19 de julho de 2012

Imoralidade no Brasil



Autos no 9-84.2006.8.16.0145 – Ação Penal

Autor:             Ministério Público
Ré:                  XXX


SENTENÇA


I. RELATÓRIO

O Representante do Ministério Público, com base no incluso inquérito policial, ofereceu denúncia em face de XXX, brasileira, solteira, natural de xxx -PR, filha de xxx, com xxx anos de idade na época dos fatos, nascida em xxx, com endereço residencial na xxx, como incursa nas sanções dos artigos 229 do Código Penal e 244-A da Lei 9.069/90, pela prática de fatos relacionados à manutenção de casa de prostituição e submissão de adolescente à exploração sexual, durante o ano de 2005, por haver permitido que o adolescente A utilizasse seu estabelecimento para se prostituir, mediante o pagamento de dez por cento sobre as rendas advindas daquele serviço.

A denúncia foi recebida em 23 de abril de 2007(fl. 38).

Citada (fls. 48, v.), a ré, por defensor constituído apresentou defesa prévia (rito anterior à Lei nº 11.719/2008), na qual arrolou testemunhas (fl. 51).

Foi interrogada (fl. 49), oportunidade e quem negou os fatos, dizendo que em seu bar não havia prostituição e dizendo também desconhecer o adolescente A.

Foram realizadas as audiências nas quais ouvidas as testemunhas arroladas pelo Ministério Público e pela defesa.

Em alegações finais, a Representante do Ministério Público pugnou pela procedência da denúncia com a condenação da ré nas penas dos artigos 229 do Código Penal e 244-A da Lei 8.069/90.

A defesa, por sua vez, em alegações derradeiras, requereu a absolvição da ré, sustentando que não há provas suficientes que autorizem o decreto condenatório.

É o relatório. DECIDO.


II. FUNDAMENTAÇÃO

Estando presentes todos os pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo, bem como as condições da ação penal e não havendo nulidades a serem declaradas, passo à análise do mérito.


1. Art. 229 do Código Penal – Casa de Prostituição

A hipótese seria de absolvição por falta de provas, eis que consta dos autos apenas e exclusivamente a versão sustentada pelo menor A, isolada nos autos e insuficiente para comprovar todos os elementos do tipo penal do art. 229 do CP.

Mas hei por bem ir além.

O caso é de atipicidade.

Como se sabe, a tipicidade legal não se resume à mera adequação da conduta à previsão abstrata do preceito primário do tipo penal. Sob a égide do influxo funcionalista (especialmente o reducionista) que vem permeando a teoria finalista, partindo da premissa de que a função do Direito Penal e, portanto, da norma penal incriminadora, é a proteção de bens jurídicos, só é considerada típica a conduta que se amolda ao preceito legal do tipo objetivo, mas que, também, ostenta flagrante contrariedade com o sistema normativo (antinormatividade) e relevante ofensa ao bem jurídico tutelado. É a chamada tipicidade conglobante, do grande Eugênio Raul Zaffaroni.

É a partir da reunião entre a tipicidade legal/formal (tipo objetivo e tipo subjetivo), a antinormatividade e a tipicidade material (relevante ofensa ou ameaça ao bem jurídico tutelado pela norma) que se pode afirmar que determinada conduta é típica. Os dois últimos elementos (antinormatividade e tipicidade material) constituem a chamada tipicidade conglobante.

O Direito Penal é, sobretudo, subsidiário, ultima ratio, só devendo intervir em abstrato quando estritamente necessário; e fragmentário, seletivo, calhando apenas em face de relevante e intolerável lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado.

O conceito formal de crime é meramente o fato humano proibido pela lei penal, conforme lições de Luiz Regis Prado, citando Bettiol. O conceito material, por sua vez, considera crime o fato humano indesejado pela sociedade, norteado pelo princípio da intervenção mínima, consistente em uma conduta produtora de um resultado que se ajusta formal e materialmente ao tipo penal.
Na lição do sempre brilhante Luiz Regis Prado, sobre o conceito material de crime:

“...diz respeito ao conteúdo do ilícito penal – caráter danoso da ação ou seu desvalor social -, quer dizer, o que determinada sociedade, em dado momento histórico, considera que deve ser proibido pela lei penal.
Em princípio, são socialmente danosas as condutas que afetam de forma intolerável a estabilidade e o desenvolvimento da vida em comunidade, só sendo admissível o emprego da lei penal quando haja necessidade essencial de proteção da coletividade ou de bens vitais do indivíduo.” [PRADO, Luiz Regis. Op. Cit. P. 241]

Assim, entende-se que a conduta praticada, deve ser adequada à realidade e não apenas ao tipo penal positivado, possibilitando uma interpretação flexível no meio jurídico. O direito penal em si, não deve se ocupar de todos os comportamentos antijurídicos decorrentes das relações sociais, mas tão somente daqueles mais intoleráveis e lesivos para os bens jurídicos.

Para que se possa ser feita uma interpretação restritiva do tipo penal, é necessária a correção da tipicidade penal, pela tipicidade conglobante de EUGÊNIO RAÚL ZAFFARONI e de JOSÉ HENRIQUE PIERANGELI:

“Tipicidade conglobante consiste na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa.” .

Ora, em primeiro lugar, se a prostituição em si não é vedada, e se a jurisprudência aceita pacificamente a existência de locais onde se pratica a prostituição, desde que não seja local exclusivo para tal prática, jurisprudência esta que vem avançando para a atipicidade da conduta; e mais, se a prostituição é profissão regulamentada pelo Ministério do Trabalho, não se verifica o elemento indispensável á tipicidade material, a antinormatividade, capaz de emprestar tipicidade conglobante ao tipo penal.

O exercício de atividades de dançarina em casa de prostituição já foi até objeto de reconhecimento de vínculo empregatício na Justiça do Trabalho:

DANÇARINA DE CASA DE PROSTITUIÇÃO – POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO. Restando provado que a autora laborava no estabelecimento patronal como dançarina, sendo revelados os elementos fático-jurídicos da relação de emprego, em tal função, não se tem possível afastar os efeitos jurídicos de tal contratação empregatícia, conforme pretende o reclamado, em decorrência de ter a reclamante também exercido a prostituição, atividade esta que de alguma forma se confunde com aquela, e, pelo que restou provado, era exercida em momentos distintos. Entendimento diverso implicaria favorecimento ao enriquecimento ilícito do reclamado, além de afronta ao princípio consubstanciado no aforismo utile per inutile vitare non debet. Importa ressaltar a observação ministerial de que a exploração de prostituição, pelo reclamado, agrava-se pelo fato de que “ restou comprovado o desrespeito a direitos individuais indisponíveis assegurados constitucionalmente – (contratação de dançarinas, menores de 18 anos), o que atrai a atuação deste MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, através da Coordenadoria de Defesa dos Interesses Difusos, Coletivos e Individuais Indisponíveis CODIN” – Procuradora Júnia Soares Nader”. TRT 3ª R. – 5 T. – RO/1125/00 – Relª: Juíza Rosemary de Oliveira Pires – DJMG 18.11.2000.

Com efeito, a prostituição é considerada uma profissão pelo próprio Ministério do Trabalho, devidamente indicada na Classificação brasileira de Ocupação sob nº 5198-05: Os profissionais do sexo.


Deste mesmo sítio, extraem-se as seguintes conclusões, com as quais concordamos:

O Processo de crescimento de uma sociedade, superação de preconceitos e respeito às diferenças é naturalmente lento e mudanças no ordenamento jurídico, para que atinja todos os componentes de uma sociedade, só é feito através de muita luta.

Um trabalho organizado da categoria poderá levar, como já vem acontecendo a uma situação de domínio e soberania das Profissionais do Sexo, que poderão exercer suas atividades profissionais, com liberdade, responsabilidade e segurança.

O Brasil ainda carece de avanços, em políticas públicas de implementação e de sustentabilidade mais eficiente, para que abrigue número considerável de mulheres e efetivamente cidadãs (não somente de mulheres eleitoras simplesmente). Abrir espaço para uma ampla participação feminina é preciso, como bem pontua Pierre Bourdieu em “A Dominação Masculina” (p.18), “a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe – se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la”.

Aprovações de Leis de combate à violência feminina, como a Lei Maria da Penha, bem como outros avanços legais são de grande importância. Mas entre o cumprimento efetivo do discurso jurídico – legal e a incorporação social da necessidade de uma convivência respeitosa, há uma distância que somente uma educação sólida em Direitos Humanos pode fazer cessar.

Um estudo mais aprofundado da prevenção dos riscos psicossociais, ainda que sua coação, esteja longe do desejável, o empresário possui uma dívida de seguridade ante os riscos psicossociais, uma dívida de seguridade cujo cumprimento pode gerar oportunas conseqüências jurídicas. Deste modo, a adoção de medidas de prevenção do assédio sexual e o adequado tratamento da denúncia da vítima podem exonerar a empresa da responsabilidade indenizatória por perdas e danos que poderia recair sobre a empresa em eventual ação de responsabilidade civil, mesmo no caso que o assediador não seja diretamente o empresário, respondendo este por culpa “in eligendo” ou “vigilando”.

É evidente que o legislador não pode prevê e disciplinar todo o aspecto da vida social. Por mais que tente adequar Leis para suprir as exigências de uma sociedade globalizada que se transforma rapidamente. Nossa jurisprudência tem se mostrado progressista ao reconhecer ao transexual o Direito a uma nova identidade sexual, mais, ainda, não consegue delimitar o alcance social dessa nova identidade.

Impõe-se esclarecer também acerca da tipicidade à luz dos conceitos de desvalor de ação e de resultado, como necessários à tipicidade material. Novamente, Luiz Regis Prado:

Essas normas proibitivas fundamentam-se na valoração positiva de certos bens do Direito que os erige à categoria de bens jurídicos e na valoração negativa das ações endereçadas à sua lesão, e que sejam perigosas de um ponto de vista ex ante. O injusto dos delitos dolosos de ação só de constitui, por isso, quando a o desvalor de ação se acrescenta o desvalor do resultado.
Saliente-se que o resultado que opera no âmbito do injusto, quer dizer, resultado axiológico (juridicamente desvalorado), por alguns, designado resultado jurídico, é o que deflui da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido. Significa aqui tecnicamente nada mais que o desvalor do resultado, que não se confunde com o resultado típico, característico dos delitos de resultado material ou natural. (Destaquei)

No caso específico do art. 229 do Código Penal, a objetividade jurídica, ou seja, o bem jurídico que se pretende proteger através da norma penal incriminadora, é “a moralidade sexual e os bons costumes” [NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 4ª Ed. São Paulo : RT, 2008. P. 807].

Pois bem, entendo que a simples manutenção da casa de prostituição, dada a atipicidade da prostituição em si, não implica qualquer mácula ao bem jurídico que se pretende tutelar. Ao contrário, como já dito, a casa serve de refúgio às prestadoras desse tipo de serviço, onde abrigadas e protegidas no exercício de seu mister. Aliás, por certo a prostituição se torna bem menos ostensiva dentro de uma casa, do que através de moças seminuas paradas nas esquinas das ruas movimentadas, como frequentemente ocorre.

A mera manutenção de casa de prostituição, por si só, entendo que seja atípica, tendo restado obstada a aplicação do art. 229 do Código Penal, tal qual já acontecera outrora com o delito de bigamia, retirado da parte especial do estatuto punitivo ante a manifesta aceitação social da conduta, ao menos sob a égide do princípio da fragmentaridade. Diferente seria, como bem aponta a jurisprudência, caso os dirigentes do estabelecimento imponham restrições aos direitos fundamentais das prostitutas, especialmente quanto ao seu inarredável direito de ir e vir.

0098568-73.2005.8.19.0001 (2006.050.06178) - APELAÇÃO 1ª Ementa
DES. GERALDO PRADO - Julgamento: 26/06/2007 - PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL RESTRIÇÃO DA LIBERDADE. CASA DE PROSTITUIÇÃO. DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS ASSEGURADOS PELA CONSTITUIÇÃO.
Direito Penal. Manutenção de casa de prostituição. Direito penal mínimo e requisitos para o reconhecimento do caráter delituoso da conduta. Em regra, atipicidade da conduta de cooperar no sentido de proporcionar local para a implementação de relação sexual entre pessoas adultas. Na hipótese comportamento, todavia, atentatório à liberdade e dignidade sexuais consistentes em a agente proibir o exercício da liberdade de escolha e de ação das prostitutas acerca da decisão de ficar ou deixar a casa de prostituição. Conduta que atinge direito fundamental das prostitutas e justifica, ainda limitadamente, a tutela penal. Não configuração de erro de proibição. Conhecimento da ilicitude provado pela versão apresentada em juízo pela acusada. Substituição de pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos. Necessidade de imposição de modalidades diversas de restrições de direitos. Ao legislador ordinário cumpre subordinar-se aos limites impostos pela Constituição da República ao exercício do poder de punir. Releitura obrigatória dos preceitos normativos que definem crimes contra a dignidade e a liberdade sexuais, impropriamente chamados de crimes contra os costumes. Exigência constitucional de que a conduta concreta, definida como delituosa, atente contra bens jurídicos e justifique o emprego de sanção penal para reprovar o fato e prevenir sua reiteração. Liberdade dos adultos de praticar relações sexuais, independentemente da motivação dos envolvidos. Conduta de manutenção de casa de prostituição que só permanece típica, à luz da Constituição, nos casos em que a liberdade e a dignidade sexuais das pessoas envolvidas são afetadas gravemente. Demonstrada violação de bem jurídico por prova de que a agente proibia prostituta de deixar a casa, salvo se efetuasse pagamento de valor livremente estipulado pela ré. Subordinação das prostitutas à ré, que atingiu a liberdade de decisão das prostitutas sobre permanecer ou não na casa de prostituição. Habitualidade do comportamento comprovada. Necessidade de as prostitutas acionarem a família, o marido e a polícia para garantir sua liberdade. Provas suficientes para embasar a condenação. Negativa de autoria, anúncios publicados em periódicos e encomendados pela agente e declarações de testemunhas que revelam consciência da ilicitude. Substituição da pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos de modalidade diversa, evitando o prejuízo à condenada. Finalidade de reprovação do fato e de oferecimento de condições à condenada para integrar-se à sociedade. Reforma parcial da sentença. Provimento do recurso da acusação e desprovimento do recurso da defesa. Destaques nossos.

No mesmo sentido:

Crimes contra os costumes – Favorecimento da prostituição, submissão de adolescentes à prostituição e rufianismo – Manutenção de casa de prostituição. Prova insuficiente para a condenação. Ausente prova da exploração da prostituição de crianças e adolescentes, o manter prostíbulo é, hoje, conduta descriminalizada pela tolerância social e pela modificação dos costumes. Apelo Ministerial improvido. Unânime.
ACr 70034954420, 5ª C. Rel. Luís da Silva Moura, j. 10.11.2010. Destaquei.

Do corpo deste acórdão podemos extrair:

É que, ante a radical modificação dos costumes, o delito ora em análise merece interpretação restritiva. A exploração comercial do sexo é hoje conduta aceita sem maiores restrições pelo grupo social. Proliferam os serviços de tele-sexo, desenvolve-se a indústria pornográfica, expandem-se as redes de motéis, saunas, drive in, boates e uma variedade de casas noturnas, onde se vendem sexo explicitamente, tudo devidamente licenciado e autorizado pelo poder público.

Assim, afora a hipótese de manutenção de casa de prostituição em que se permita ou explore o comércio carnal de crianças e adolescentes, prática que deve ser severamente combatida, o explorar prostíbulo é conduta que só a cega hipocrisia pode entender não descriminalizada pelos costumes.

 E, na situação dos autos, em restando indemonstrada a exploração da prostituição de crianças e adolescentes no estabelecimento comercial administrado pelos ora apelados, é de se ter atípico o agir que a denúncia lhe imputa.

Constam do acórdão outros precedentes semelhantes:

PENAL. CASA DE PROSTITUIÇÃO. HIPÓTESE DESCRIMINALIZADA PELA ACEITAÇÃO SOCIAL DE TAL PRÁTICA. SUBMISSÃO DE CRIANÇA OU ADOLESCENTE À PROSTITUIÇÃO. HIPÓTESE NÁO COMPROVADA. À unanimidade negaram provimento ao apelo.” (Apelação Crime Nº 70016227829, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 13/09/2006).

“CASA DE PROSTITUIÇÃO. ABSOLVIÇÃO. Na medida em que o Estado-Administração concede alvará de localização e funcionamento a casas noturnas (boates, prostíbulos e outras), cobrando taxas e impostos, não há justificativa racional para a condenação da acusada. Absolvição mantida. APELO MINISTERIAL DESPROVIDO.” (Apelação Crime Nº 70014947105, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 29/06/2006).

No Direito Penal Brasileiro, encontramos também a presença de outros princípios os quais, podemos aplicar no caso em tela. Dentre os quais, o princípio da intervenção mínima, o qual prevê que sanção penal estabelecida para cada delito, deve ser necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, evitando, portanto a utilização abusiva da norma penal.

Incide no caso vertente, sem dúvida, o princípio da intervenção mínima. Para compreensão do princípio em apreço, é oportuno debruçar a lição de Cezar Roberto Bitencourt :

“Segundo esse princípio, é necessária uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Freqüentemente, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado. A insignificância de determinada conduta deve ser aferida não apenas em relação à importância do bem jurídico atingido, mas especialmente em relação ao grau de sua intensidade, isto é, pela extensão da lesão produzida.”

Com a admissão dos elementos normativos e subjetivos do tipo penal, a tipicidade deixou de ser mera descrição de condutas, permitindo que embora emoldurada em determinada descrição legal se possa reconhecer a atipicidade da ação perpetrada pelo agente.

Nesse sentido, convém transcrever a lição de Maurício Antônio Ribeiro Lopes, na obra Princípio da Insignificância no Direito Penal, Ed. RT, 2º Edição, p. 117/118:

"O juízo de tipicidade, para que tenha efetiva significância e não atinja fatos que devam ser estranhos ao Direito Penal, por sua aceitação pela sociedade ou dano social irrelevante, deve entender o tipo, na sua concepção material, como algo dotado de conteúdo valorativo, e não apenas sob seu aspecto formal, de cunho eminentemente diretivo. Para dar validade sistemática à irrefutável conclusão político-criminal de que o Direito Penal só deve ir até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico, não se ocupando de bagatelas, é preciso considerar materialmente atípicas as condutas lesivas de inequívoca insignificância para a vida em sociedade."

O aspecto material compreende o respeito e conformidade às normas constitucionais e direitos e garantias fundamentais e direitos humanos. O respeito à legalidade formal garante a vigência da lei, mas somente a legalidade material assegura sua validade.

E é justamente sob este aspecto material que o art. 229 do Código Penal, seja pelo desuetudo, seja pela adequação social, seja pela desconformidade com o texto Constitucional vigente, não pode ser considerado crime.

Na seara penal, além da justiça material e da segurança jurídica, que são finalidades da lei por excelência, o bem jurídico desempenha uma função teleológica, como critério ode interpretação dos tipos penais, condicionando o alcance e o sentido da norma à necessidade de proteção de bens e valores essenciais ao indivíduo e à comunidade. Como consequência, deverão ser consideradas atípicas todas aquelas condutas que não acarretem lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico determinado. [PRADO, Luiz Regis. Op. Cit. P. 185]

O controle de validade material pode ser feito pela via de ação direta, controle concentrado perante o Supremo Tribunal Federal, assim como pelo controle difuso de constitucionalidade, exercido por todos os órgãos do Poder Judiciário.

Sob o aspecto formal, o art. 229 do Código Penal é válido, pois respeitadas as determinações constitucionais quando de sua elaboração, em 1940.

Contudo, não se pode desconsiderar a importância do princípio da adequação social como mitigador da tutela repressiva do estado, e o completo esvaziamento da função daquele tipo penal, vez que não mais se presta (se é que um dia se prestou) a proteger o bem jurídico que pretende tutelar.

A teoria da adequação social foi concebida por Hans Welzel, que preconiza a ideia de que, apesar de uma conduta se subsumir ao tipo penal, é possível deixar de considerá-la típica quando socialmente adequada, isto é, quando estiver de acordo com a ordem social.
Nessa linha de raciocínio, a teoria da adequação social se revela como um princípio geral de interpretação dos tipos penais, posto que deles exclui os comportamentos considerados socialmente adequados (aceitos). É possível afirmar que, em razão da sua aplicação, não são consideradas típicas as condutas que praticadas dentro do limite de ordem social normal da vida, haja vista serem, assim, compreendidas como toleráveis pela própria sociedade.

Note-se que o objeto dessa teoria não é a tipicidade formal da conduta, mas a material. Em outras palavras, o comportamento continua sendo formalmente típico, haja vista que se subsume perfeitamente à norma penal incriminadora. O que se atinge com a sua aplicação é a tipicidade material. Vejamos:

A conduta somente é materialmente típica quando há lesividade em face do bem jurídico protegido. Partindo dessa premissa, se um comportamento é aceito pela sociedade, ou seja, se está dentro da considerado adequado, ou, pelo menos, tolerável, pela sociedade, não há como puni-lo, em razão, principalmente, da inexistência de reprovação social.

Finalmente, conforme ensina Mir Puig: não se pode castigar aquilo que a sociedade considera correto [LOPES, Mauricio Antônio Ribeiro. Princípio da insignificância no direito penal. 2ª Ed., São Paulo : RT, 2000. P. 34].

Embora o STF já haja rejeitado a tese anteriormente (HC 104.467), não tenho dúvidas de que há plena aceitação social com relação às casas de prostituição, ante a crescente superexposição do sexo nas mídias, através de suas novelas, filmes, cinema pornográfico, reality shows onde não raras vezes se pratica sexo ao vivo, além de diversas outras situações congêneres.

A redação do art. 229 do Código Penal remete ao imortal Nelson Hungria. Sem nenhum desrespeito àquele brilhante criminalista, fato é que a norma perdeu seu substrato básico.

Sociologicamente, as leis são as restrições à liberdade auto impostas pela sociedade como normas de conduta, aceitas por todos (ou, ao menos, por uma ampla maioria), com o objetivo de permitir a vida em comunidade. Regras de boa convivência, baseadas na convicção majoritária de um povo.

Mesmo na década de quarenta (há mais de setenta anos...), a existência de prostíbulos, lupanários, casas de burlesco e similares nunca foi unanimemente repudiada pela comunidade. Sempre houveram adeptos e simpatizantes.

Há quem diga que a prostituição é a profissão mais velha do mundo...
Nesta ótica, é necessário tratar também sobre a questão dos costumes, como fonte do Direito Penal. É assente na doutrina a possibilidade do uso dos costumes secundum legem, para reforçar a aplicação de determinadas normas, e dos costumes praeter legem, que servem para preencher lacunas deixadas pelo legislador. A celeuma se instaura quando se tratam dos costumes contra legem, contrários à lei, especialmente quando possuem caráter derrogatório, o chamado desuetudo ou consuetudo abrogatoria.

Em que pese haja doutrina de enorme peso (v.g. Luiz Regis Prado) em sentido contrário [PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. V. 1. 7ª Ed. São Paulo : RT, 2007. P. 168], dizendo que, com base no art. 2º da LICC, somente uma lei pode derrogar outra lei, e não o desuetudo, ouso discordar daquele brilhante criminalista, por entender que não cabe à norma penal dar aso à hipocrisia social, e que o consuetudo abrogatoria tem o condão de afastar a aplicabilidade de lei penal incriminadora, mormente quando o bem jurídico tutelado se alterou em razão da alteração dos costumes.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já acolheu este entendimento:

0002743-62.2003.8.19.0037 (2006.050.03290) - APELAÇÃO 1ª Ementa
DES. SERGIO DE SOUZA VERANI - Julgamento: 11/10/2007 - QUINTA CÂMARA CRIMINAL
CASA DE PROSTITUIÇÃO (ART. 229, CP). ATIPICIDADE. SUBMISSÃO DE ADOLESCENTE À EXPLORAÇÃO SEXUAL (ART. 244-A, ECA). GUARDA DE ARMA DE FO-GO (ART. 10, LEI 9437/97). SILENCIADOR (ART. 10, §2º). FATO ANTERIOR À LEI 10.826/03. INOCORRÊNCIA DA ABOLITIO (ART. 32, LEI 10.826/03). O tipo do art. 229, do Código Penal, carece de legitimidade ante a tipicidade penal (= a tipicidade legal + tipicidade conglobante). La tipicidad conglobante es un correctivo de la tipicidad legal. ( Eugenio Raul Zaffaroni). Trata-se de fato consentido, estimulado e divulgado pela mídia. A norma penal não pode vincular-se a princípios da moralidade e da hipocrisia social. Sentença absolutória confirmada. O tipo do art. 244-A, ECA, realiza-se com a ação de submeter a adolescente à prostituição ou à exploração sexual. A ação típica de submeter significa constranger, intimidar, impor, obrigar, subjugar. Não demonstrada a submissão, impõe-se a absolvição. A abolitio temporária prevista no art. 32, Lei 8026/03, não se aplica aos fatos anteriores à lei. Recurso da defesa provido. Provimento parcial do apelo ministerial.

Também não há dúvidas de que o conceito de moral e bons costumes da década de quarenta nem de longe se assemelha (lamentavelmente) aos parâmetros atuais.

Na década de setenta, nos Estados Unidos, ficou famosa a questão envolvendo Larry Flynt, editor da famigerada revista pornográfica Hustler, que pôs em choque a moral americana com sua publicação de conteúdo diretamente pornográfico, superando as publicações de conteúdo meramente erótico que existiam até então. Um de seus principais argumentos lançados à época, com o qual concordou a Suprema Corte Americana, foi de que a questão presente não era de Direito, de ilegalidade, mas, sim, de gosto. Que alguns gostavam do conteúdo publicado, e outros não, mas que o simples fato de haver pessoas a quem o conteúdo não agradava não deveria ceifar do povo americano o direito de escolher livremente, de decidir por ver ou não aquele conteúdo. Citou, na oportunidade, que imoral não eram as mulheres nuas ou a atividade sexual, mas, sim, as guerras travadas pelos Estados Unidos (na época, em plena guerra do Vietnam), matando milhares de pessoas.

Penso que ele tem razão.

No Estado Brasileiro, famoso pelo carnaval (desfile de milhares de mulheres praticamente nuas – algumas nuas), pelas novelas de conteúdo sensual, pelas pornochanchadas que inauguraram o Cinema Brasileiro, pela beleza das praias e mulheres brasileiras, não vejo como pode ser imoral a existência de uma casa de prostituição.

Nas grandes capitais, convenhamos, todos sabemos quais são e onde estão. Até porque, a presença de personalidades de revistas nos estabelecimentos é amplamente divulgada nas rádios, em faixas e até outdoors! E não se tratam de casebres escuros escondidos em bairros periféricos, meramente tolerados pela autoridade policial. Longe disso. São grandes casas de shows em pleno centro da cidade!

Em São Paulo, por exemplo, a casa de prostituição mais famosa era a Bahamas, que ficou sob os holofotes após o acidente aéreo com a aeronave da TAM que se chocou no final da pista do aeroporto de Congonhas. No país da piada pronta, um acidente envolvendo possível falha humana, possível falha de construção da pista de pouso, possível problema com controle de tráfego aéreo, decide-se punir a quem: o dono do lupanário, claro!

Imoral, a meu ver, é o sangramento dos cofres públicos decorrentes da corrupção, escancarados na imprensa em um escândalo atrás do outro. Licitações frequentemente fraudadas, concursos públicos fraudados, mensalões e mensalinhos, ligações de parlamentares com grandes empresas suspeitas de fraudes monumentais... Meu Deus, ISSO sim é imoral, escandaloso, e contra esse tipo de absurdo deve se voltar o Direito Penal.

Alguns absurdos infinitamente piores já foram regulamentados e institucionalizados, como as doações de campanha e as articulações políticas. Será possível que só eu percebo que isso são eufemismos para troca de favores e corrupção?

Para espancar de vez a questão, Guilherme de Souza Nucci leciona:
O objeto jurídico é formado pela moralidade sexual e os bons costumes. O objeto material é o estabelecimento em que ocorre exploração sexual. Como já mencionamos, os tribunais pátrios não vêm condenando os proprietários de vários estabelecimentos, onde há prostituição, sob o pretexto de que não são lugares destinados, exclusivamente, à exploração sexual, mas motéis, bares, saunas ou casas de massagem, que podem abrigar, eventualmente, condutas configuradoras de prostituição. Não se critica a jurisprudência; ao contrário, deve-se censurar a lei, persistindo em impingir um comportamento moralmente elevado – ou eleito como tal – à coletividade através de sanções penais. Os que forem contrários aos locais de prostituição devem buscar sanar o que consideram um problema através de campanhas de esclarecimento ou educação moral, mas jamais se valendo do direito penal, que já muito tempo se mostra ineficaz para combater esse comportamento. Nesse prisma, confira-se absolvição imposta pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Quando há prostituição ás claras, diante os olhos dos órgãos repressores do Estado, sem o envolvimento de menores de idade, ainda que contrariando a opinião pública, não se justifica a aplicação da lei penal. Portanto, afastada a culpabilidade dos agentes imputados delituosos, a absolvição é corolário lógico.. (...). Com efeito, é inconcebível que ainda se processe alguém por manter casa de prostituição, fato corriqueiro e amplamente tolerado. E, diga-se, a existência dessas casas é do interesse da própria comunidade, por lição há muito aprendida. Isto porque, não sendo possível erradicar a prostituição, a sua prática em espaços privados é menos nociva do que em espaços públicos – o famoso trottoir. Dos males, o menor. (Ap. 70006417943, 6ª C., Rel. Des. João Batista Marques Tovo. J. 27.10.2005. Destaquei.

São inúmeros também os projetos de lei objetivando a regulamentação da prostituição no Brasil, passando, portanto, de um regime de mero abolicionismo/tolerância para o necessário regulamentarismo.

Inadmissível, portanto, persistir na incoerência e hipocrisia histórica da criminalização da manutenção da casa de prostituição, se a prostituição em si não é ilícita. O que se deve punir com rigor é a prostituição infantil, ou a prática de cárcere privado

Prefere o legislador que as prostitutas fiquem nas ruas, dentro de carros, em vielas escuras, em constante risco de sofrerem todo tipo de violência, quando poderiam, mediante razoável contraprestação pecuniária, exercer sua atividade em local próprio, com adequação sanitária, conforto e segurança? Se for o caso, a inconstitucionalidade é flagrante. Como bem consta do aresto jurisprudencial acima, dos males, o menor!

Sem cobertura de leis e sem proteção legal, ela atravessa a vida ultrajada e imprescindível, pisoteada, explorada, nem a sociedade a dispensa, nem lhe reconhece direitos, nem lhe dá proteção. E quem já alcançou o ideal dessa mulher, que um homem tome pela mão, a levante, e diga: minha companheira.
(CORA CORALINA, “Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais”)

Ante o exposto, diante da inocorrência de adequação típica por falta de tipicidade conglobante decorrente da ausência de antinormatividade e de ofensa ao bem jurídico tutelado, sob o influxo dos desuetudos, alteração da objetividade jurídica e adequação social, aliados aos princípios da fragmentaridade e intervenção mínima, impõe-se a absolvição da acusada.


2. Art. 244-A da Lei 8.069/90

A materialidade do delito não está, a meu ver, satisfatoriamente demonstrada, a ponto de justificar a prolação de édito condenatório.

Compulsando os autos e bem analisando os depoimentos colhidos seja na fase inquisitorial, seja em audiência (fls. 49, 58 e 84), o depoimento do menor A, afirmando que fazia programas no estabelecimento da ré, é o único indício de prova capaz de ligar sua afirmada prostituição àquele estabelecimento.

Nenhuma prova veio aos autos indicando que o menor efetivamente se prostituía naquele local, além de sua própria versão, que carece de credibilidade por estar isolado nos autos. Os depoimentos testemunhais, quando muito, indicavam a existência de casa de prostituição do local, mas em nenhum momento restou comprovada a conduta de submeter qualquer adolescente à exploração sexual, inclusive o menor A, ou de permitir tal ocorrência dentro do estabelecimento da ré.

Assim sendo, não havendo efetiva prova da existência dos fatos, impõe-se a absolvição da acusada. Neste sentido:

ECA. Exploração sexual de menores. Ausência de prova em relação a uma das vítimas. Absolvição. Homenagem ao princípio in dubio pro reo. Tráfico interno de pessoas. Crime meio. Exploração sexual. Crime fim. Conflito aparente de normas. Aplicação. Não havendo elementos para sustentar a condenação pelo crime de exploração sexual de menores em relação a uma das vítimas, deve a ré ser absolvida, em homenagem ao princípio in dubio pro reo.Comprovado que a ré forneceu alojamento às adolescentes, visando à exploração da prostituição, o delito de tráfico de pessoas, capitulado no art. 231-A do CP, resta absorvido pelo crime de exploração sexual de menores, capitulado no art. 244-A do 102.003. Apelação Criminal231-ACP244-A
(10200320050031662 RO 102.003.2005.003166-2, Relator: Desembargador Cássio Rodolfo Sbarzi Guedes, Data de Julgamento: 29/06/2006, 1ª Vara Criminal)


III. DISPOSITIVO

Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTES a pretensões condenatórias veiculadas pelo Ministério Público, nos termos do art. 386, III quanto ao primeiro fato e 386, II quanto ao segundo fato, ambos do Código de Processo Penal, para os fins de absolver a ré XXX das imputações que lhe foram feitas nestes autos.

Sem custas em razão da absolvição.

Cumpra-se o disposto no Código de Normas. Após o trânsito em julgado, arquivem-se estes autos mediante as comunicações e baixas necessárias.


Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpra-se.


Oportunamente, arquivem-se.


Ribeirão do Pinhal, 17 de julho de 2012.




SERGIO BERNARDINETTI
Juiz de Direito

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