18 de outubro de 2012

Rodeios


2ª Vara Judicial da Comarca de Espírito Santo do Pinhal
Autos nº 943/2011
Autor:                                Ministério Público do Estado de São Paulo
Réu:                                   Município de Espírito Santo do Pinhal

S  E  N  T  E  N  Ç  A

Vistos.
1. Relatório:
O Ministério Público do Estado de São Paulo propôs ação civil pública tendo por objeto que o réu cumpra com deveres de prevenir, fiscalizar e impedir as provas de rodeio que ensejem sofrimento aos animais (fls. 2-29).
A tutela liminar foi concedida (fl. 91).
O Município de Espírito Santo do Pinhal apresentou contestação especificamente limitada à montaria em bois. Deduziu chamamento ao processo, invocou preliminar de ilegitimidade passiva, aduziu a inidoneidade da via eleita para o questionamento com supressão de efeitos de leis, defendeu que há determinações para impedir a crueldade, afirmou que rodeios são manifestações culturais e sustentou que a intervenção jurisdicional sobre o tema constituiria invasão indevida na esfera de discricionariedade do agente político (fls. 96-106).
Houve réplica (fls. 112-120).
O processo foi saneado (fl. 126), com afastamento da matéria preliminar e do chamamento ao processo.
Durante a instrução foi inquirida uma testemunha (fl. 144).
As partes apresentaram alegações finais (fls. 152-181 e 186-203).
É o relatório. Decido.

2. Fundamentação:
A alegação de ilegitimidade passiva já foi decidida (fl. 126) e se encontra preclusa. Mas cumpre asseverar que o Município de Espírito Santo do Pinhal é parte legítima para constar na posição de réu, pois é o responsável pela concessão de alvarás para os eventos, além de ter atribuição fiscalizatória.
A via utilizada (ação civil pública) é adequada, pois tem por escopo a proteção ambiental e o controle de constitucionalidade pretendido se insere no âmbito difuso, não tendo sido aplicada como sucedâneo do processo constitucional objetivo.
Em relação ao mérito, a pretensão inicial é manifestamente procedente. Inclusive, é digna de elogios e de admiração a excelente atuação dos ilustres Promotores de Justiça.
Já de plano se tem que os eventos eram realizados em área urbana, mas existe proibição expressa no sentido de que os rodeios não podem ser realizados em perímetro urbano. Está ela no artigo 23 da Norma Técnica Especial, aprovada e anexa ao Decreto Estadual n. 40.400/1995.  
E, além disso, há muito mais.
A inicial veio instruída com fartíssima prova documental, inclusive encartando estudos sérios e levados a efeito por profissionais idôneos (fls. 43-48, 50-57 e 59-66) que atestam a existência de sofrimento físico e mental aos animais nas provas cuja restrição se pretende. Enquanto que o réu apenas se limitou a juntar reportagens extraídas da internet e que não trazem referências quanto à fonte técnica, quanto aos participantes do estudo, quanto ao modo de desenvolvimento do raciocínio e quanto à responsabilidade técnica dos pesquisadores (fls. 107-110).
Em adição à já robusta prova documental, a testemunha inquirida atestou que não há notícia de que exista como utilizar animais nas provas de rodeios em questão sem a utilização dos instrumentos que geram sofrimento aos animais (fl. 144).
Também não se pode perder de vista que o fato de o animal ser colocado em uma arena, cercada por espectadores, com locução e músicas é uma ambiente claramente estressor (ou seja, gerador de sofrimento mental), notadamente ao se considerar que a audição dos animais é muito mais apurada e sensível do que a dos homens. Vale dizer: ainda que não houvesse crueldade física (e que existe, conforme o demonstraram as provas dos autos), existiria a crueldade em impor um sofrimento mental. Logo, não prospera a alegação de que há cautelas para impedir crueldade, pois quaisquer cautelas apenas obstam uma crueldade exacerbada, na media em que não suprimem o sofrimento físico e mental.
Não é viável confundir, como quis a parte ré, a violência em lutas livres com a violência aos animais, por uma razão fundamental, que é a voluntariedade. Em lutas livres estão pessoas que se prepararam especificamente para aquilo e que consentiram em se submeter ao espetáculo de brutalidade, enquanto que os animais não possuem voz para escolher seu destino.
A situação traz à memória a lição de Louis J. Camuti: “Jamais creia que os animais sofrem menos do que os humanos. A dor é a mesma para eles e para nós. Talvez pior, pois eles não podem ajudar a si mesmos”. 
Também nada há de manifestação cultural. As provas são originárias dos Estados Unidos da América, e não do Brasil, várias delas tendo nomes em língua inglesa, com peões vestidos em visual country (no estilo western). Como muito bem observou a parte autora, esses eventos em nada se parecem com o sertanejo e o caipira que são tipicamente brasileiros. E também não se trata de uma manifestação completamente integrada à cultura nacional, pois não é intrínseco à quase totalidade dos brasileiros o sentimento de que rodeios representam a nação. Pelo contrário, quer parecer que a grande maioria dos cidadãos brasileiros não compactua com a violência aos animais que ocorre nos rodeios.
E mesmo que se tratasse de uma manifestação cultural (originária ou já integrada completamente à cultura nacional), o que não ocorre, ainda assim poderia haver a tutela jurisdicional. Claro, pois a evolução de um povo passa necessariamente pela supressão de condutas bárbaras, quer por uma mudança coletiva e natural de consciência, quer por força do ordenamento jurídico-social. É válido lembrar, por exemplo, que várias tribos indígenas originárias do Brasil tinham o canibalismo por costume cultural e nem por isso o ordenamento jurídico tolerou a manutenção do canibalismo, tendo-o extirpado da licitude.
Com acerto, Victor Hugo arrematou que “primeiro foi necessário civilizar o homem em relação ao próprio homem. Agora é necessário civilizar o homem em relação à natureza e aos animais”.
Hoje, olhando-se para trás na história, percebe-se absurdos que já foram cometidos pelos homens por não saber reconhecer o valor da vida dos seres que conosco habitam a Terra. Com o caminhar da humanidade, talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos que jamais poderiam ter-lhes sido negados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é razão para que um ser humano seja irremediavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. É possível que um dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que um bebê de um dia, de uma semana, ou até mesmo de um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria tal fato? A questão não é ‘eles são capazes de raciocinar?’, nem ‘são capazes de falar?’, mas, sim, ‘eles são capazes de sofrer?’” (Jeremy Bentham). Alguns dos direitos já chegaram. E um deles é justamente o que está em discussão nesta causa: a vedação à crueldade com animais.
Embora não alegado pela parte ré, é de todo oportuno salientar que argumentos econômicos também não sustentam a manutenção nos eventos de provas que gerem sofrimento aos animais. Principalmente porque essas provas não são o principal chamariz de público. Os estudos colacionados demonstraram que são as outras atrações, especialmente as musicais, as maiores atrações. Tanto assim o é que mesmo no material publicitário de divulgação das festas passadas as competições de montaria não eram colocadas sequer em destaque (diversamente das atrações musicais, as quais recebiam grande destaque). E efetivamente há inúmeras atrações que podem ser realizadas, atrair grande público e expressiva renda, sem que se precise impor sofrimento desnecessário aos animais. Novamente como foi muito bem apontado pelo Ministério Público, o tráfico de drogas gera um movimento de milhões de reais e nele estão inseridas muitas pessoas, mas não é por isso que o tráfico vai ser considerado lícito.
É até incongruente ser realizado um evento com o intuito de gerar alegria às pessoas, mas para tanto se valer do sofrimento de animais. Lembrava Pitágoras que “aquele que semeia a morte e o sofrimento não pode colher a alegria e o amor”.
E como há o sofrimento (físico e mental) aos animais, toda e qualquer norma infraconstitucional que tolere tais práticas se mostra como inválida perante a Constituição, eis que olvida da proteção do meio ambiente e submete os animais a crueldade desnecessária (artigos 23, V e VII; e 225, § 1º, inciso VII, da Constituição).
Até parece que nossa Constituição foi inspirada por Philip Ochoa, o qual disse: Olhe no fundo dos olhos de um animal e, por um momento, troque de lugar com ele. A vida dele se tornará tão preciosa quanto a sua e você se tornará tão vulnerável quanto ele. Agora sorria, se você acredita que todos os animais merecem nosso respeito e nossa proteção, pois em determinado ponto eles são nós e nós somos eles”.
Ou por Leonardo Da Vinci, que com sua genialidade, nos lembrou de que: “Haverá um dia em que o homem conhecerá o íntimo dos animais. Neste dia, um crime contra um animal será considerado um crime contra a própria humanidade”.  
E não se trata de indevida interferência jurisdicional na discricionariedade do administrador público, mas sim de correção da falta de atendimento aos comandos constitucionais.
A Constituição tem prevalência sobre qualquer outro ato, norma ou vontade política. Os direitos e garantias nela presentes devem ser concretamente assegurados pelo Poder Judiciário. Todas as lesões ou ameaças a direitos são passíveis de apreciação pelo Poder Judiciário. É o princípio constitucional da inafastabilidade, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição. A missão institucional do Poder Judiciário caracteriza suas funções típicas como a preservação da Constituição Federal e o exercício da jurisdição, que nada mais é do que a solução dos casos concretos, fazendo-se valer o ordenamento jurídico.
Destarte, a solução pela procedência é inexorável.
3. Dispositivo:
Diante do exposto, extinguindo o feito com resolução de mérito e ao tempo em que confirmo a liminar, julgo procedente a pretensão inicial para os efeitos de:
(a) Impor ao Município de Espírito Santo do Pinhal a obrigação de não fazer consistente em não realizar, autorizar ou permitir a realização de rodeios e quaisquer congêneres no perímetro urbano.
(b) Impor ao réu a obrigação de não fazer consistente em não realizar, permitir ou autorizar a realização de rodeios e quaisquer congêneres que impliquem uso de sédens, cordas e congêneres (quaisquer que sejam os materiais constitutivos), peiteiras, sinos, choques elétricos ou mecânicos e esporas de qualquer tipo (ainda que sem rosetas).
(c) Impor ao réu a obrigação de não fazer consistente em não realizar, permitir ou autorizar a realização de provas congêneres, tais como calf roping, team roping, bulldogging e vaquejadas, ou ainda outras que impliquem variações no que tange às técnicas de laçada, lançamento ou agarramento de animais, bem como outros eventos semelhantes que envolvam maus-tratos e crueldade a animais. E
(d) Impor ao réu a obrigação de fazer (no âmbito de seu território) consistente em tomar medidas efetivas para coibir a realização das práticas proibidas, inclusive, se necessário e exemplificativamente, através de cassação de alvarás, interdição de atividades, embargos e acionamento judicial.
Para o caso de descumprimento fixo multa de cem salários mínimos (vigentes ao tempo da violação) para cada dia de realização de qualquer dos eventos que se encontre no âmbito das obrigações impostas. Fixo também multa de cem salários mínimos para cada hipótese de comprovada inércia do réu em atuar para impedir a realização de tais eventos, multa esta que incidirá ainda que o evento não venha a ser realizado por decorrência da atuação de outros órgãos ou instituições.
Eventual recurso será recebido apenas no efeito devolutivo.
Sem custas, diante da condição do réu.
Sem fixação de honorários sucumbenciais, à vista da condição do autor.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Espírito Santo do Pinhal, autodata.

AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

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