2ª Vara Judicial da
Comarca de Espírito Santo do Pinhal
Autos nº 943/2011
Autor: Ministério
Público do Estado de São Paulo
Réu: Município
de Espírito Santo do Pinhal
S E N
T E N Ç A
Vistos.
1. Relatório:
O Ministério Público do Estado de São Paulo propôs ação civil pública tendo
por objeto que o réu cumpra com deveres de prevenir, fiscalizar e impedir as provas
de rodeio que ensejem sofrimento aos animais (fls. 2-29).
A tutela liminar foi concedida (fl. 91).
O Município de Espírito Santo do Pinhal apresentou contestação especificamente
limitada à montaria em bois. Deduziu chamamento ao processo, invocou preliminar
de ilegitimidade passiva, aduziu a inidoneidade da via eleita para o
questionamento com supressão de efeitos de leis, defendeu que há determinações
para impedir a crueldade, afirmou que rodeios são manifestações culturais e sustentou que a intervenção
jurisdicional sobre o tema constituiria invasão indevida na esfera de discricionariedade
do agente político (fls. 96-106).
Houve réplica (fls. 112-120).
O processo foi saneado (fl. 126), com afastamento da matéria preliminar
e do chamamento ao processo.
Durante a instrução foi inquirida uma testemunha (fl. 144).
As partes apresentaram alegações finais (fls. 152-181 e 186-203).
É o relatório. Decido.
2. Fundamentação:
A alegação de ilegitimidade passiva já foi decidida (fl. 126) e se
encontra preclusa. Mas cumpre asseverar que o Município de Espírito Santo do
Pinhal é parte legítima para constar na posição de réu, pois é o responsável
pela concessão de alvarás para os eventos, além de ter atribuição
fiscalizatória.
A via utilizada (ação civil pública) é adequada, pois tem por escopo a
proteção ambiental e o controle de constitucionalidade pretendido se insere no
âmbito difuso, não tendo sido aplicada como sucedâneo do processo
constitucional objetivo.
Em relação ao mérito, a pretensão inicial é manifestamente procedente.
Inclusive, é digna de elogios e de admiração a excelente atuação dos ilustres
Promotores de Justiça.
Já de plano se tem que os eventos eram realizados em área urbana, mas existe
proibição expressa no sentido de que os rodeios não podem ser realizados
em perímetro urbano. Está ela no artigo 23 da Norma Técnica Especial, aprovada
e anexa ao Decreto Estadual n. 40.400/1995.
E, além disso, há muito mais.
A inicial veio instruída com fartíssima prova documental, inclusive
encartando estudos sérios e levados a efeito por profissionais idôneos (fls. 43-48,
50-57 e 59-66) que atestam a existência de sofrimento físico e mental aos animais
nas provas cuja restrição se pretende. Enquanto que o réu apenas se limitou a
juntar reportagens extraídas da internet
e que não trazem referências quanto à fonte técnica, quanto aos participantes
do estudo, quanto ao modo de desenvolvimento do raciocínio e quanto à
responsabilidade técnica dos pesquisadores (fls. 107-110).
Em adição à já robusta prova documental, a testemunha inquirida atestou
que não há notícia de que exista como utilizar animais nas provas de rodeios em
questão sem a utilização dos instrumentos que geram sofrimento aos animais (fl.
144).
Também não se pode perder de vista que o fato de o animal ser colocado
em uma arena, cercada por espectadores, com locução e músicas é uma ambiente
claramente estressor (ou seja, gerador de sofrimento mental), notadamente ao se
considerar que a audição dos animais é muito mais apurada e sensível do que a
dos homens. Vale dizer: ainda que não houvesse crueldade física (e que existe,
conforme o demonstraram as provas dos autos), existiria a crueldade em impor um
sofrimento mental. Logo, não prospera a alegação de que há cautelas para
impedir crueldade, pois quaisquer cautelas apenas obstam uma crueldade
exacerbada, na media em que não suprimem o sofrimento físico e mental.
Não é viável confundir, como quis a parte ré, a violência em lutas
livres com a violência aos animais, por uma razão fundamental, que é a voluntariedade. Em lutas livres estão
pessoas que se prepararam especificamente para aquilo e que consentiram em se
submeter ao espetáculo de brutalidade, enquanto que os animais não possuem voz para
escolher seu destino.
A
situação traz à memória a lição de Louis J. Camuti: “Jamais creia que os animais sofrem
menos do que os humanos. A dor é a mesma para eles e para nós. Talvez pior,
pois eles não podem ajudar a si mesmos”.
Também nada há de manifestação cultural. As provas são originárias dos
Estados Unidos da América, e não do Brasil, várias delas tendo nomes em língua
inglesa, com peões vestidos em visual country
(no estilo western). Como muito bem
observou a parte autora, esses eventos em nada se parecem com o sertanejo e o
caipira que são tipicamente brasileiros. E também não se trata de uma manifestação
completamente integrada à cultura nacional, pois não é intrínseco à quase
totalidade dos brasileiros o sentimento de que rodeios representam a nação. Pelo
contrário, quer parecer que a grande maioria dos cidadãos brasileiros não compactua
com a violência aos animais que ocorre nos rodeios.
E mesmo que se tratasse de uma manifestação cultural (originária ou já integrada completamente à cultura nacional), o que não ocorre, ainda
assim poderia haver a tutela jurisdicional. Claro, pois a evolução de um povo
passa necessariamente pela supressão de condutas bárbaras, quer por uma mudança
coletiva e natural de consciência, quer por força do ordenamento jurídico-social.
É válido lembrar, por exemplo, que várias tribos indígenas originárias do
Brasil tinham o canibalismo por costume cultural e nem por isso o ordenamento
jurídico tolerou a manutenção do canibalismo, tendo-o extirpado da licitude.
Com acerto, Victor Hugo arrematou que “primeiro foi necessário
civilizar o homem em relação ao próprio homem. Agora é necessário civilizar o
homem em relação à natureza e aos animais”.
Hoje, olhando-se para trás na história, percebe-se absurdos que já
foram cometidos pelos homens por não saber reconhecer o valor da vida dos seres
que conosco habitam a Terra. Com o caminhar da humanidade, “talvez chegue o
dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos que jamais
poderiam ter-lhes sido negados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já
descobriram que o escuro da pele não é razão para que um ser humano seja
irremediavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. É possível que um
dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação
do osso sacro são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser
senciente ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A
faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou um
cão adultos são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que um bebê
de um dia, de uma semana, ou até mesmo de um mês. Supondo, porém, que as coisas
não fossem assim, que importância teria tal fato? A questão não é ‘eles são
capazes de raciocinar?’, nem ‘são capazes de falar?’, mas, sim, ‘eles são
capazes de sofrer?’” (Jeremy
Bentham). Alguns dos direitos já chegaram. E um deles é justamente o que está
em discussão nesta causa: a vedação à crueldade com animais.
Embora não alegado pela parte ré, é de todo oportuno salientar que
argumentos econômicos também não sustentam a manutenção nos eventos de provas que
gerem sofrimento aos animais. Principalmente porque essas provas não são o
principal chamariz de público. Os estudos colacionados demonstraram que são as
outras atrações, especialmente as musicais, as maiores atrações. Tanto assim o
é que mesmo no material publicitário de divulgação das festas passadas as
competições de montaria não eram colocadas sequer em destaque (diversamente das
atrações musicais, as quais recebiam grande destaque). E efetivamente há
inúmeras atrações que podem ser realizadas, atrair grande público e expressiva
renda, sem que se precise impor sofrimento desnecessário aos animais. Novamente
como foi muito bem apontado pelo Ministério Público, o tráfico de drogas gera
um movimento de milhões de reais e nele estão inseridas muitas pessoas, mas não
é por isso que o tráfico vai ser considerado lícito.
É até incongruente ser realizado um evento com o intuito de gerar
alegria às pessoas, mas para tanto se valer do sofrimento de animais. Lembrava
Pitágoras que “aquele que semeia a morte
e o sofrimento não pode colher a alegria e o amor”.
E como há o sofrimento (físico e mental) aos animais, toda e qualquer
norma infraconstitucional que tolere tais práticas se mostra como inválida perante a Constituição, eis que
olvida da proteção do meio ambiente e submete os animais a crueldade desnecessária (artigos 23, V e VII; e
225, § 1º, inciso VII, da Constituição).
Até parece que nossa Constituição foi inspirada por Philip Ochoa, o
qual disse: “Olhe no fundo dos olhos de um animal e, por um
momento, troque de lugar com ele. A vida dele se tornará tão preciosa quanto a
sua e você se tornará tão vulnerável quanto ele. Agora sorria, se você acredita
que todos os animais merecem nosso respeito e nossa proteção, pois em
determinado ponto eles são nós e nós somos eles”.
Ou por Leonardo Da Vinci,
que com sua genialidade, nos lembrou de que: “Haverá um dia em que o homem conhecerá o íntimo dos animais. Neste
dia, um crime contra um animal será considerado um crime contra a própria
humanidade”.
E não se trata de indevida interferência jurisdicional na
discricionariedade do administrador público, mas sim de correção da falta de
atendimento aos comandos constitucionais.
A
Constituição tem prevalência sobre qualquer outro ato, norma ou vontade política.
Os direitos e garantias nela presentes devem ser concretamente assegurados pelo
Poder Judiciário. Todas as lesões ou ameaças a direitos são passíveis de
apreciação pelo Poder Judiciário. É o princípio
constitucional da inafastabilidade, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição.
A missão institucional do Poder Judiciário caracteriza suas funções típicas
como a preservação da Constituição Federal e o exercício da jurisdição, que
nada mais é do que a solução dos casos concretos, fazendo-se valer o ordenamento
jurídico.
Destarte, a solução pela procedência é inexorável.
3. Dispositivo:
Diante do exposto, extinguindo o feito com resolução de mérito e ao
tempo em que confirmo a liminar, julgo
procedente a pretensão inicial para os efeitos de:
(a)
Impor ao Município de Espírito Santo do Pinhal a obrigação de não fazer
consistente em não realizar, autorizar ou permitir a realização de rodeios e
quaisquer congêneres no perímetro urbano.
(b)
Impor ao réu a obrigação de não fazer consistente em não realizar,
permitir ou autorizar a realização de rodeios e quaisquer congêneres que
impliquem uso de sédens, cordas e congêneres (quaisquer que sejam os materiais
constitutivos), peiteiras, sinos, choques elétricos ou mecânicos e esporas de
qualquer tipo (ainda que sem rosetas).
(c)
Impor ao réu a obrigação de não fazer consistente em não realizar,
permitir ou autorizar a realização de provas congêneres, tais como calf roping, team roping, bulldogging
e vaquejadas, ou ainda outras que impliquem variações no que tange às técnicas
de laçada, lançamento ou agarramento de animais, bem como outros eventos
semelhantes que envolvam maus-tratos e crueldade a animais. E
(d)
Impor ao réu a obrigação de fazer (no âmbito de seu território)
consistente em tomar medidas efetivas para coibir a realização das práticas proibidas,
inclusive, se necessário e exemplificativamente, através de cassação de
alvarás, interdição de atividades, embargos e acionamento judicial.
Para o caso de descumprimento fixo multa de cem salários mínimos (vigentes
ao tempo da violação) para cada dia de realização de qualquer dos eventos que
se encontre no âmbito das obrigações impostas. Fixo também multa de cem
salários mínimos para cada hipótese de comprovada inércia do réu em atuar para
impedir a realização de tais eventos, multa esta que incidirá ainda que o
evento não venha a ser realizado por decorrência da atuação de outros órgãos ou
instituições.
Eventual recurso será recebido apenas no efeito devolutivo.
Sem custas, diante da condição do réu.
Sem fixação de honorários sucumbenciais, à vista da condição do autor.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Espírito Santo do Pinhal, autodata.
AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto
Bela sentença, Ayrton!
ResponderExcluirAbraços.
Meus aplausos pela irretocável sentença! Um abraço Ayrton
ResponderExcluirJoão Aender
Muito obrigado meus amigos!
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