15 de outubro de 2011

Primado da realidade



Autos nº 103/2009
Vistos, etc.
1. Cuidam os autos de embargos à execução fiscal estadual relativa ao ressarcimento de vencimentos pagos pelo Estado de São Paulo à embargante em período no qual esteve ausente ao serviço sem se submeter a perícia médica pelo Departamento Médico do Estado. Aduziu a embargante não prosperar a execução porque ao tempo respectivo (de 18.11.2004 a 31.5.2006) se encontrava (como ainda se encontra) com severos problemas de saúde, assim como seu filho e seu esposo também apresentavam moléstias de saúde que implicavam na necessidade de que permanecesse cuidando deles (sendo a única pessoa que havia para tanto). Narrou ainda que se submeteu a avaliações médicas realizadas na região e como não tinha condições físicas e nem materiais de comparecer para perícias no Departamento Médico do Estado, àquela época o Ministério Público intercedeu solicitando ao Estado de São Paulo que as perícias fossem realizadas em localidade mais próxima (fls. 2-12).
O Estado de São Paulo apresentou contrariedade, impugnando os embargos sob os argumentos de que a embargante não exerceu corretamente os seus direitos, pois a inspeção médica a que deveria se submeter é exigência legal e regulamentar (fls. 65-68).
Houve réplica (fls. 75-77).
É o relatório. Decido.
A Lei nº 6.830/80, que dispõe sobre a execução fiscal, versa matéria especial que apenas subsidiariamente recebe suplementação pelos dispositivos do Código de Processo Civil (art. 1º). Para que ocorra a aplicação do CPC, portanto, é necessária não apenas a ausência de norma específica, como também que o dispositivo aplicado não esteja em contrariedade com o sistema da LEF. Nessa orientação, no que tange à garantia do juízo, deve ser aplicada a expressa previsão da LEF, contida em seu artigo 16, § 1º, de modo que “não são admissíveis embargos do executado antes de garantida a execução”.
E, compulsando os autos na parte relativa às cópias da execução fiscal (fls. 52-62), constata-se que a execução não foi garantida de maneira integral, o que implica na rejeição liminar dos embargos.
Já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que “é condição de admissibilidade, para a oposição de embargos, a segurança do Juízo – Inteligência do artigo 16, § 1º, da Lei nº 6.830/80” (TJSP, AI 468.511.5/4-00, rel. Carlos de Carvalho, j. 16.4.2009). No mesmo sentido se posicionou o Superior Tribunal de Justiça, ao entender que “o conhecimento dos embargos à execução é inadmissível quando o juízo não for garantido por nenhum meio em direito admitido (art. 16, § 1º, da Lei nº 6.830/80)” (STJ, REsp nº 931.064, rel. Min. Luiz Fux, p. 28.2.2008).
Destarte, com fundamento no artigo 16, § 1º, da Lei nº 6.830/80, rejeito liminarmente os embargos.
2. Todavia, a matéria ventilada nos embargos pode ser conhecida a título de objeção de preexecutividade na execução (que prescinde de recolhimento de custas e de garantia do juízo).
A objeção de preexecutividade (incidente inicialmente denominado como “exceção” por Pontes de Miranda) é criação da doutrina e jurisprudência que visa tornar mais célere a prestação jurisdicional, evitando a prática de atos que seriam desnecessários e inócuos (penhora, imobilização patrimonial, embargos) naqueles casos em que nitidamente se mostra impossível que a execução venha a prosperar.
É o que ocorre na espécie, máxime porque a matéria pode ser decidida sem dilação probatória (eis que a prova documental já encartada aos autos é suficiente à solução do caso).
E a execução merece mesmo ser extinta.
Primeiro porque, muito embora não tenha conseguido exercer de modo pleno os seus direitos funcionais, não há dúvidas de que a executada fazia mesmo jus tanto à licença para tratamento de saúde (para a própria executada), quanto à licença para tratamento de saúde em pessoa da família (no marido e, principalmente, no filho).
Isso porque a documentação médica que instruiu o feito (especialmente as lançadas às fls. 15-20, 22, 23, 33-35) é suficiente a demonstrar que a executada, seu marido e seu filho possuíam mesmo moléstias incapacitantes para atividades profissionais, quanto mais para a função de professora que exercida a executada, função essa que exige boa estabilidade emocional para seu correto desempenho.
Aliás, a confirmar a trágica história de vida da executada é possível verificar que desde 2.12.1986 (fls. 25-27) passou por inúmeros e sucessivos afastamentos decorrentes de moléstias de saúde.
Nesse contexto, como primazia da realidade sobre a forma, tenho que deve ser prestigiada a realidade de que a autora tinha mesmo direito material às licenças, situação hábil a validar os afastamentos, mesmo que não tenha sido adotado o procedimento (forma) exigido administrativamente pelo Estado de São Paulo.
Segundo, porque se as verbas chegaram a ser pagas pelo Estado mesmo sem o comparecimento da executada às atividades profissionais é porque ao tempo do pagamento interpretou o Estado que as verbas deveriam ser pagas.
E como a autora estava acometida de moléstia de saúde, seu marido e seu filho também, e como havia requerimento de que a perícia médica fosse realizada em região mais próxima (requerimento levado a conhecimento da Administração Pública por intermédio do Ministério Público e em época contemporânea ao período relacionado à execução fiscal – fls. 38-39, 40-41, 42, 43-44 e 45), não tendo havido resposta oportuna e em tempo hábil a tais solicitações, resulta de clareza solar a existência de boa-fé da executada no recebimento das verbas.
Por conseguinte, incide a inteligência ao entendimento da firme “jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que ‘é incabível o desconto das diferenças recebidas indevidamente pelo servidor, em decorrência de errônea interpretação ou má aplicação da lei pela Administração Pública, quando constatada a boa-fé do beneficiado’" (STJ, REsp 1086048/RS, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 13.9.2011).
Terceiro, em razão de que a lei (art. 191 da Lei n. 10.261/68) apenas exige que a perícia seja realizada por “órgão médico oficial”, não especificando que essa perícia somente pudesse ser realizada pelo Departamento Médico do Estado localizado na Capital. Logo, era possível ao Estado o atendimento à solicitação da executada, com a realização da perícia por órgão médico oficial localizado em região mais próxima, eis que a executada estava séria e comprovadamente impossibilitada de se deslocar até a Capital.
Aliás, tanto assim o é que o próprio Decreto n. 29.180/88 (com redação alterada pelo Decreto n. 52.088/2007) prevê a possibilidade de delegação de perícias a outros órgãos médicos oficiais, de modo que não havia justificativa para desrespeitar a necessidade concreta da executada e exigir que ela comparecesse específica e exclusivamente para perícia no Departamento Médico do Estado na Capital.
De todo modo, ainda que se considerasse que haveria de se seguir apenas e limitadamente a previsão do Decreto n. 29.180/88 com a realização da perícia pelo Departamento Médico do Estado na Capital no âmbito do cargo ocupado pela executada, há de se ver que essa previsão não está contida na lei (art. 191 da Lei n. 10.261/68), a qual apenas exige que a perícia seja realizada por “órgão médico oficial”.
E, por ter o decreto ido além da previsão legal, limitando o exercício do direito funcional, não poderia ser considerado como válido nesse aspecto. É que mero decreto regulamentar não possui o status de lei em sentido estrito (o que seria necessário para que se pudesse ter por válida a limitação ao exercício de direitos). Sobre o tema, Maria Sylvia Zanella Di Pietro oportunamente leciona que:
"...o ato normativo não pode contrariar a lei, nem criar direitos, impor obrigações, proibições, penalidades que nela não estejam previstos, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade (art. 5º, II, e 37, caput, da Constituição)” (Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1995, p. 74.).
De se acrescentar que o sistema jurídico brasileiro (que consagra sistema hierárquico de normas) concedeu status jurídico superior às leis editadas pelo processo legislativo respectivo, que só podem ser alteradas, restringidas ou ampliadas por diploma normativo de igual ou superior patamar hierárquico. Regras de patamar jurídico inferior - tais como decretos regulamentares – não têm o condão de dispor sobre matéria veiculada pela Constituição ou por leis fora dos liames por essas delineados. O regulamento somente pode atuar como meio de explicitar o conteúdo da lei, que é a sua fonte de validade, sendo a ela subordinado. Não podem atos administrativos restringir direitos ou o exercício deles, agindo fora dos limites legais e constitucionais. Celso Antônio Bandeira de Mello também trata a questão, manifestando-se nos seguintes termos:
"Nesse caso, o regulamento – além de nada acrescentar pois isto ser-lhe-ia, de todo modo, defeso – também nada restringe ou suprime do que se continha nas possibilidades resultantes da dicção da lei. Aqui, é ainda mais evidente sua função interpretativa, que será, no que isto concerne, exclusivamente interpretativa, cumprindo meramente a função de explicar o que consta da norma legal ou explicar didaticamente seus termos, de modo a 'facilitar a execução da lei', expressões, estas encontráveis, habitualmente, nos conceitos doutrinários correntes sobre regulamento" (Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 203).
O mesmo autor acrescenta:
"É que os dispositivos constitucionais caracterizadores do princípio da legalidade no Brasil impõem ao regulamento o caráter que se lhe assinalou, qual seja, o de ato estritamente subordinado, isto é, meramente subalterno, e ademais, dependente de lei. Daí que, entre nós, só podem existir regulamentos conhecidos no Direito alienígena como 'regulamentos executivos'. Daí que, em nosso sistema, de direito, a função do regulamento é muito modesta" (Curso de Direito Administrativo. 6. ed. São Paulo: Malheiros, p. 170).
Em suma, somente a lei pode inovar originariamente no ordenamento jurídico ou alterá-lo, não sendo oponível à executada o decreto regulamentar no aspecto em que restringe a perícia por órgão médico oficial exclusivamente à perícia pelo Departamento Médico do Estado na Capital.
Vale dizer: o Estado precisava e deveria ter atendido à solicitação de que a perícia médica fosse realizada em localidade mais próxima, à qual pudesse a executada comparecer. E se assim não agiu o Estado, não pode agora ter por inadmissível a licença que materialmente cabia à servidora. E se a licença é um direito a que fazia mesmo jus a servidora, torna-se inválida a exigência de ressarcimento aos cofres públicos pelos vencimentos pagos no período respectivo.  
Diante do exposto, acolho a pretensão como objeção de preexecutividade e dou-lhe provimento para o efeito de JULGAR EXTINTA a execução fiscal n. 006/2007.
3. Em razão da sucumbência recíproca (pois enquanto a executada restou sucumbente nos embargos, foi o Estado quem deu causa à execução fiscal que restou extinta), ficam compensados os honorários advocatícios, nos moldes do artigo 21, caput, do CPC e do disposto na Súmula n. 306 do Superior Tribunal de Justiça.
4. Traslade-se cópia da presente decisão para os autos de execução fiscal.
Oportunamente, arquive-se.
5. Decisão não sujeita a reexame necessário (CPC, art. 475, § 2º).
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Pariquera-Açu, autodata.
 AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

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