20 de setembro de 2012

A verdade sobre os contratos de seguro...


2ª Vara Judicial da Comarca de Espírito Santo do Pinhal
Autos nº 432/2011
Autora:            A
Réu:                 B

S  E  N  T  E  N  Ç  A

Vistos.
1. Relatório:
A relatou que se encontra com invalidez permanente e formulou pretensão de cobertura securitária, reparação material pelas despesas com os honorários advocatícios contratuais e reparação moral (fls. 2-15).
B apresentou contrariedade ao argumento de que o contrato de seguro somente tem cobertura para casos de invalidez total, assim considerada como aquela em que o segurado perde a capacidade para a vida independente, o que não seria o caso. Contestou também os pedidos de reparação civil (fls. 83-107).
A réplica foi lançada (fls. 132-135).
O processo foi saneado (fls. 147-148).
Durante a instrução foi realizada perícia médica (fls. 184-190).
As partes puderam se manifestar sobre o laudo.
É o relatório. Decido.

2. Fundamentação:
O pronto julgamento está viabilizado, pois os elementos de fato pertinentes à solução do caso já estão completamente delineados nos autos.
É indubitável que a autora possui incapacidade parcial e permanente, sendo essa moléstia incapacitante para o trabalho, mas permitindo que ela mantenha vida independente (ou seja, sem necessidade de cuidados para o desempenho de atividades vitais e sociais básicas). Assim o confirmou o laudo pericial (fls. 184-190), os documentos médicos (fls. 68-71, 159-163 e 171-175) e, aliás, é até mesmo incontroverso entre as partes.
Na realidade, a controvérsia estabelecida está no âmbito da cobertura securitária. Enquanto a autora defende que sua modalidade de invalidez enseja a cobertura, a parte ré afirma que somente estaria coberta a invalidez que impede a manutenção de vida independente.
O documento apresentado pela autora à fl. 50 em que consta a menção à cobertura por invalidez parcial por doença por si só não é suficiente a amparar a pretensão, eis que não se trata de documento que tenha sido fornecido ou elaborado pela ré à autora, mas sim de documento elaborado pelo setor de recursos humanos da empresa em que a autora ingressou para trabalhar, no qual se procurava esclarecer os funcionários acerca das caraterísticas, deveres e benefícios fornecidos pela empresa (fls. 43-67).
Mas a conjugação desse documento com outros elementos torna certa a necessidade de procedência quanto à cobertura securitária.
Examinei atentamente o contrato de seguro em grupo (fls. 113-128).
De fato, o contrato traz situações diversas: a invalidez parcial decorrente de acidente, que é acobertada; e a invalidez parcial decorrente de doença, que não é acobertada. No caso de doença o contrato apenas possui cobertura para invalidez total que impeça a vida independente.
Todavia, apesar de serem essas as disposições contratuais, tenho que a cláusula de limitação da cobertura para os casos de invalidez por doença padece de vício e, por isso, não pode ser oposta à autora (de forma a relativizar a força obrigatória dos contratos).
Entendo que os contratos de seguro em grupo também são regidos pelas normas de defesa do consumidor, pois os seus destinatários e beneficiários efetivos são as pessoas individualmente consideradas, eis que é a cada situação passada pelo indivíduo que se terá ou não a configuração da hipótese de cobertura. Por isso, acredito que deva ser aplicada a regra que exige que as cláusulas com cunho restritivo sejam redigidas de modo claro e destacado (artigo 54, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor).
Mas mesmo que não houvesse a previsão e a incidência da norma consumerista, tenho que pela legislação civil também emana essa obrigatoriedade na técnica contratual, pois ela decorre da boa-fé que deve reger todas as relações jurídicas e que inspira tanto a Constituição quanto o Código Civil. Vale dizer, é pressuposto de boa-fé que situações contratuais devam ser claras, não podendo ser nebulosas ou redigidas de modo a dificultar a compreensão.
E o contrato em questão viola esse dever de clareza e destaque. O contrato traz em suas cláusulas um jogo de palavras e de remissões em que as cláusulas dizem respeito a uma situação, mas a situação em si e como ela é considerada estão descritas em local diverso. Isso ocorre com as regras da invalidez, em que o contrato trouxe cláusulas específicas para a invalidez por acidente e para invalidez por doença, mas fez remissões a outros pontos do contrato em que ocorrem as distinções das situações e a diversidade de coberturas.
Esse modo de redação das cláusulas tornou o contrato não apenas nebuloso, como verdadeira e intensamente confuso, intercalando assuntos semelhantes com remissões a pontos distintos do contrato.
Não foi por acaso que a empresa se confundiu com as situações ao elaborar o guia apresentado aos funcionários (fl. 50). Também os ilustres advogados da parte autora assim o fizeram. E até mesmo este magistrado teve enorme dificuldade para conseguir compreender exatamente os termos contratuais.
E se as cláusulas são tão nebulosas a ponto de dificultar inclusive a compreensão por um magistrado, o que se dizer de uma trabalhadora de poucas luzes e que não teve acesso a estudo jurídico.
Nesse contexto, tenho que a restrição da cobertura securitária para os casos de invalidez permanente em que acarrete incapacidade plena para a vida independente padece de vício e deve ser afastada, autorizando-se, pois, a cobertura securitária para todos os casos de invalidez por doença (mesmo a parcial, tal como ocorrido com a autora). Daí que tenho como procedente o pedido de condenação à cobertura securitária no valor de R$ 21.489,60, correspondente a vinte e quatro vezes o salário base.
Como a parte ré laborou de modo negligente ao formular as cláusulas contratuais de modo nebuloso e agiu também de modo negligente (e equivocado) ao depois negar a cobertura securitária à autora, incorreu em ilícito civil, ensejando para a autora a necessidade de ingresso na seara judicial para conseguir obter o seu direito. Inclusive, conforme se verá quando da abordagem dos danos morais, o ilícito civil se dá até mesmo na modalidade de dolo.
Em razão do ilícito civil surgiu o dever de reparação, devendo a autora ser reparada pela ré por todas as despesas que tiver em decorrência da conduta ilícita. E nisso se incluem os honorários advocatícios contratuais, pois consistem em despesas que reduzem o patrimônio da autora, redução patrimonial essa que ela não teria se tivesse havido a cobertura securitária no momento correto (que era quando a ré foi instada administrativamente ao pagamento). Trata-se de reparação material, que bem atende ao critério diferencial no balanço patrimonial da parte lesada. E no presente caso os honorários estão amparados por contrato (fls. 76-78) e o valor ajustado (vinte por cento) é consentâneo com a natureza da causa, não havendo qualquer abuso ou desproporção. Necessária, pois a reparação material em vinte por cento do valor condenatório principal.
De um modo geral, em princípio o descumprimento contratual não enseja responsabilização ao pagamento de indenização por danos morais. Porém, no presente caso há situações excepcionais que atraem a sua incidência.
A indenização securitária indubitavelmente seria utilizada pela autora para melhor suas condições de conforto e de tratamento da moléstia de saúde, o que serviria para amenizar sua angústia e sofrimento. Já por aí seria necessária a reparação moral.
Mas não é só. A prática forense traz a segura conclusão de que alguns contratos de seguro são formulados com cláusulas nebulosas de modo proposital, tal como aconteceu no presente caso. Eles levam as pessoas a acreditar que estarão asseguradas em mais situações do que aquelas que o contrato efetivamente pretende assegurar.
Não se trata de mera falha técnica, mas de obnubilação intencional. Daí, quando tragicamente ocorre a situação que não está efetivamente assegurada (muito embora a pessoa pensasse que estivesse), as instituições se valem do jogo de palavras do contrato para negar a cobertura.
É óbvio que isso é intencional, pois as instituições possuem corpo jurídico hábil (sob o prisma da técnica) o suficiente a formular contratos claros se o quisessem. Mas não o querem, e isso porque essa forma de agir estimula a captação de um maior número de contratantes (que acreditam estar assegurados em mais hipóteses do que realmente estão) e ao mesmo tempo traz uma aparente justificativa para a negativa de cobertura naqueles casos em que ocorrem os eventos não cobertos. E destes casos, a quantidade de pessoas que chega ao Poder Judiciário para reivindicar seus direitos é ínfima em comparação com o quadro total de pessoas lesadas. Logo, é uma forma de agir lucrativa para as instituições de seguro, em detrimento da credulidade dos consumidores.
 Em verdade, essa forma de agir nos contratos teve início nos contratos de seguro formulados nos Estados Unidos e foi “copiada” posteriormente nos outros países, como no Brasil. Lá esse método é ainda mais lucrativo, pois o acesso à justiça é extremamente difícil e caro.
Mas no Brasil o método também é lucrativo e muito embora o acesso à justiça seja por aqui mais facilitado, ainda são proporcionalmente poucos os casos que chegam ao Poder Judiciário.
Nesse contexto, penso que nos casos que chegam ao Poder Judiciário, cabe a este atuar de modo firme, com vistas a coibir e desestimular o modo de agir aviltante às pessoas. O aviltamento ofende a dignidade da pessoa lesada, o que torna presente o abalo moral.
Cumpre, pois, dimensionar o valor da reparação moral. E sopesando o tempo pelo qual a autora já se viu tolhida da satisfação de seus direitos (ao que se soma ainda mais um período indeterminado de tempo, eis que o sistema processual possibilita uma infinidade de recursos), as condições econômicas da parte ré (instituição de expressivo porte e atuação em âmbito nacional) e, principalmente, a suficiência para coibir a reiteração de condutas semelhantes, tenho como coerente (e até mesmo ínfima diante da lucratividade gerada pelo modo de proceder indevido utilizado pela ré nos contratos de seguro) a mensuração do valor para reparação dos danos morais na quantia de R$ 100.000,00 (cem mil reais). Observo que muito embora o valor seja superior ao requerido na petição inicial, entendo que em sede de danos morais o pedido é meramente estimativo e não vincula a sentença, eis que cabe ao juiz definir a quantia devida em conformidade com seu prudente arbítrio.
3. Dispositivo:
Diante do exposto, extinguindo o processo com resolução de mérito, julgo procedente a pretensão inicial para os fins de:
(a) CONDENAR o réu pagar à autora a quantia de R$ 21.489,60 (vinte e um mil quatrocentos e oitenta e nove reais e sessenta centavos), referente à cobertura securitária, acrescida de juros moratórios de 1% (um por cento) ao mês e correção monetária pela tabela prática do TJSP, ambos contados desde a citação (16.5.2011).
(b) CONDENAR o réu a pagar à autora reparação civil por danos morais no montante de R$ 100.000,00 (cem mil reais), com correção monetária pela tabela prática do TJSP e juros moratórios de 1% (um por cento) ao mês, ambos contados a partir da presente data (momento em que o valor foi arbitrado). E
(c) CONDENAR o réu a pagar à autora em reparação civil por danos materiais a quantia equivalente a vinte por cento do somatório das condenações pela cobertura securitária e pelos danos morais.
Em razão da sucumbência, condeno o réu ao pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios em favor dos patronos da autora, honorários esses que fixo em 20% do valor total da condenação, sopesando para tanto a qualidade e o tempo do trabalho desenvolvido, sem perder de vista que a nobre profissão da advocacia merece ser remunerada de modo condigno.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Espírito Santo do Pinhal, 16 de setembro de 2012.

AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

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