5 de setembro de 2012

Compra coletiva e loteria camuflada


Juizado Especial Cível da Comarca de Amparo
Autos nº 013/2012
Autor:                       G
Ré:                            N

S  E  N  T  E  N  Ç  A

Vistos.
1. Dispensado o relatório (art. 38, caput, da Lei nº 9.099/95), passo a decidir.
2. Começo pelo exame do pedido contraposto, o qual se mostra manifestamente improcedente. Com efeito, a ré pretende usar como causa de pedir do pedido contraposto o fato de o autor haver ajuizado a demanda. Ocorre que o uso do direito de ação consiste em exercício regular do direito, de modo que já por aí não haveria qualquer dano moral indevido á ré.
E não é só. O autor não apenas exerceu regularmente o seu direito de ação como efetivamente possui o direito material que buscou. Ou seja, não houve qualquer conduta abusiva por parte do autor.
Na verdade, abusiva foi a conduta da ré ao ter deduzido tão descabido pedido contraposto (manifestamente improcedente), sem que se estivesse diante de qualquer ato ilícito ou de abuso no exercício do direito pelo autor. A ré sim abusou no exercício do direito de ação, e, por conseguinte, deve ser reputada como litigante de má-fé, por haver vulnerado o artigo 14, inciso III, e o artigo 17, incisos V e VI, do Código de Processo Civil.
Passo agora ao exame da pretensão inicial.

Rejeito as questões preliminares defensivas. A ré é parte legítima tanto por haver participado da cadeia de consumo, quanto porque na situação do caso atuou como parceira comercial do Peixe Urbano, tendo experimentado incremento de suas vendas com a parceria (o que atrai a incidência da teoria do risco/proveito); por conseguinte, é ela solidariamente responsável pelo ressarcimento do consumidor, não havendo qualquer irregularidade em o autor estar pretendendo obter da ré a reparação por seus danos. A competência do Juizado Especial da Comarca de Amparo emana da expressa letra do artigo 4º, inciso III, da Lei n. 9.099/95.
Quanto ao mérito, a pretensão inicial é procedente.
Como já examinado por ocasião da legitimidade passiva, mesmo a ré não sendo a vendedora dos cupons, é ela responsável pela reparação ao consumidor. Isso porque a ré teve direto proveito ao firmar a parceria comercial com o Peixe Urbano, pois isso fez com que um grande leque de consumidores adquirisse cupons do Peixe Urbano para poder comprar produtos com desconto junto à ré. Ou seja, a ré teve proveito diretamente da situação.
A não disponibilidade do produto pretendido pelo autor se afigura como ato lesivo. A fartíssima documentação apresentada com a inicial (fls. 6-7 e 8-15) demonstra que o autor realizou inúmeras tentativas de comprar o produto que desejava e que estava sendo anunciado pela ré. Todavia, a ré apenas colocou algumas poucas unidades do produto almejado para efetiva venda, transformando uma situação que era certa (o desconto nos produtos vendidos pela loja virtual e que eram anunciados para venda) em uma questão de pura sorte (a depender da sorte de o consumidor tentar realizar a compra logo após a ré disponibilizar no sítio algum dos poucos exemplares que venderia). Isso obviamente quebra o caráter sinalagmático das relações civis e de consumo. A ré pretendeu que no período da promoção houvesse limitação excessiva de produtos e dependência da sorte do consumidor, sem que disso tivesse sido alertado o consumidor de modo claro, adequado e antes da conclusão da triangulação negocial.
Para usar termos claros, a ré estabeleceu uma verdadeira loteria (embora de modo camuflado), passando a transformar uma relação de consumo em um jogo de azar. E isso é de todo inadmissível. Tanto por a ré não estar autorizada pelos órgãos fiscalizadores a desempenhar atividade lotérica, quanto porque essa reserva mental não foi antecipada e claramente apresentada ao consumidor.
Nesse contexto, o dever de indenizar recai sobre a ré.
O ressarcimento material consiste na despesa que o autor teve com o cupom, ou seja: de R$ 25,00. Esse valor deve ser atualizado monetariamente desde a data inicial da promoção (20.9.2011), pois desde então passou a sofrer os efeitos de corrosão da moeda.
Os danos morais estão presentes.
Primeiro, pela própria conduta abusiva da ré em transformar uma relação de consumo em um camuflado jogo de azar.
Segundo, pela efetiva frustração dos anseios do autor, pois como ele pretendia comprar um relógio feminino (e sendo ele homem), não há dúvidas de que o objetivo da compra era o de presentar alguma mulher.
Terceiro, porque o autor foi tratado de modo desidioso pela ré, que não deu pronta solução às solicitações que ele realizou para regularização do negócio (fls. 8-15). O autor foi submetido a inúmeras idas e vindas para conseguir obter um direito que claramente possuía. Esse quadro de desídia, a meu entender, transborda o mero dissabor decorrente do desacerto negocial e se afigura hábil a aviltar a dignidade do consumidor, tornando presente o dano moral. Como bem anota o ilustre magistrado paulista Eurico Leonel Peixoto Filho, a “frustração deixa de ser natural e passa a configurar verdadeiro sofrimento moral quando o consumidor começa uma via sacra em busca de um direito seu (...). De fato, as idas e vindas na busca da resolução do problema ocasionam irritações, transtornos e frustrações que transcendem os meros aborrecimentos decorrentes de prejuízos materiais. Esses sofrimentos morais, portanto, devem ser indenizados”.
Cumpre, então, mensurar o valor da indenização.
Atentando que a fixação deve ser suficiente a recompensar o lesado (sem ser irrisória e, ao mesmo tempo, sem se constituir em causa de enriquecimento indevido), bem como sopesando no caso as condições econômicas da ré (sólida empresa) e do autor, a intensidade das ofensas (que, como já visto, foram plúrimas) e a suficiência para coibir a reiteração de condutas semelhantes pela ré (merecendo realce na espécie que a documentação apresentada pelo autor demonstra que vários outros consumidores foram alvo da mesma prática indevida, conforme se extrai às fls. 16-28, o que implica em severos transtornos aos consumidores e gera inúmeras demandas judiciais, atulhando desnecessariamente o Poder Judiciário; modo de agir esse que obviamente se afigura lucrativo, pois do contrário haveria modo de agir mais diligente e atencioso para com as pessoas em geral), reputo coerente e proporcional a mensuração do valor para reparação dos danos morais na quantia de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Esclareço, por oportuno, que embora essa quantia seja elevada se comparada a outros salários, não se trata de quantia capaz de enriquecer ninguém; nem mesmo um andarilho é capaz de se tornar rico com a quantia de dez mil reais, de modo que não se há que ter essa quantia como um enriquecimento desproporcional. Anoto, ainda, que muito embora a quantia seja superior à pedida na inicial, em sede de dano moral isso se faz possível, pois cabe ao juiz definir a quantia, sendo de se entender que as estimativas apresentadas pelas partes consistem em meras sugestões.
3. Dispositivo
Diante do exposto:
(a) JULGO IMPROCEDENTE o pedido contraposto.
(b) JULGO PROCEDENTE a pretensão inicial, extinguindo o feito com resolução do mérito (CPC, art. 269, inciso I), para os efeitos de:
(b.1) CONDENAR a ré a ressarcir ao autor a quantia de R$ 25,00, com correção monetária pela Tabela Prática do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo desde 20.9.2011 e juros moratórios de 1% (um por cento) ao mês (estes contados desde a citação – 25.1.2012). E
(b.2) CONDENAR a ré a pagar ao autor reparação civil por danos morais no montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais) sobre o qual incidirão juros de 1% (um por cento) ao mês e correção monetária pela Tabela Prática do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ambos contados da presente data (momento em que o valor se tornou líquido) até o efetivo pagamento.
Observa-se que a ré praticou atos atentatórios à dignidade da justiça, pois, como mencionado na fundamentação desta sentença, restou reconhecida como litigante de má-fé. Desse modo, condeno a ré a suportar integralmente as custas processuais, bem como a pagar honorários advocatícios ao patrono do autor, os quais fixo em 20% (vinte por cento) do montante total da condenação, na forma do art. 20, § 3º, do Código de Processo Civil, tendo em vista o grau de zelo do profissional, a fixação de quantia que se afigure condigna ao desempenho da nobre profissão que é a advocacia e a suficiência para evitar futuros procedimentos temerários por parte da ré.
Oportunamente, expeça-se certidão de honorários em favor do ilustre advogado que atuou no feito em função do convênio da assistência judiciária (no valor máximo da tabela).
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Amparo, autodata.
AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

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