5 de fevereiro de 2012

Adimplemento Substancial


VISTOS PARA SENTENÇA.

L e N, já devidamente qualificados nos autos, ajuizaram a presente Ação de Consignação em Pagamento, c/c Obrigação de Fazer em face de R, igualmente qualificada. Aduziram os autores, em suma, haverem celebrado com a ré instrumento particular de compra e venda de um imóvel situado na rua XXXX. Avençou-se que o pagamento do bem, no total de R$7.500,00, dar-se-ia mediante a entrega de R$3.000,00 no ato, enquanto que o montante residual seria pago em 24 parcelas de R$226,00. Disseram que, por dificuldades outras, deixaram de pagar 4 prestações, combinando com a ré que a quitação se daria em momento oportuno. Todavia, após amealharem o valor faltante, recusou-se a ré em recebê-lo, condicionando a quitação ao pagamento da quantia de R$5.000,00, relativa à valorização do imóvel. Por fim, requereram autorização para depósito da quantia devida, bem como seja a ré compelida em outorgar a escritura pública respectiva. Valoraram a causa e juntaram documentos (fls. 02/27).

Conclusos os autos, foi deferida a liminar autorizando o depósito (fl. 28).

Devidamente citada, a ré compareceu aos autos e apresentou resposta na forma de constestação (fls.35/41). Alegou haver previsão contratual para rescisão da avença na hipótese de mora dos promissários compradores no pagamento de três parcelas. Impugnou a tentativa dos autores em efetuar a purgação da mora. Teceu comentários a respeito dos princípios da autonomia da vontade, consensualismo, obrigatoriedade da convenção, relatividade dos efeitos do contrato e boa-fé. Ainda disse serem os autores devedores de encargos tributários incidentes no bem durante sua ocupação e quitados pela ré. Requereu, ao final, a declaração de improcedência dos pedidos.

Houve réplica (fls. 43/48).

É o relatório do necessário. Fundamento e DECIDO.


Trata-se de ação de consignação em pagamento, c/c obrigação de fazer ajuizada por L e N em face de R, partes já devidamente qualificadas.

O feito comporta julgamento antecipado, nos termos do art. 330, inc. I, do Código de Processo Civil, uma vez que, compulsando os autos, vislumbra-se a matéria “sub judice” não demandar instrução adicional, além de já se encontrar nos autos a necessária prova. Ademais, muito embora intimadas as partes, os autores protestaram pelo julgamento antecipado da lide, enquanto a ré deixou fluir in albis o prazo para se manifestar.

Preliminarmente, ainda que nada alegado pelos autores, observo haver irregularidade no que se refere à representação da ré em Juízo. E isso porque a contestação não veio acompanhada da necessária procuração de poderes da parte em favor de sua causídica (art. 13 do CPC).

Todavia, na medida em que a sentença, como se verá adiante, será pela procedência dos pedidos, desnecessária a conversão do julgamento em diligência para que seja regularizada a questão, ex vi do art. 249, §2º, do CPC. Claro, no entanto, que a aceitação de qualquer outro ato dependerá da regularização, o que deverá ser procedido no prazo de 10 dias.

Ainda em âmbito preliminar, anoto não haver qualquer óbice na cumulação do pedido de consignação em pagamento com o de obrigação de fazer (outorga de escritura pública), uma vez sendo observado o rito ordinário, nos termos do art. 292, §2º, do CPC.

Reconheço, portanto, presentes os pressupostos processuais de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo. Concorrem ao caso as condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual, entendidas como de direito abstrato. Também não vislumbro qualquer vício processual, estando ausentes as hipóteses dos artigos 267 e 295 do Código de Processo Civil.

A petição é apta e o procedimento corresponde à natureza da causa. A pretensão deduzida não carece de pedido ou causa de pedir. Ademais, o pedido é, em tese, juridicamente possível, não havendo incompatibilidade de pedidos, sendo que, a princípio, da narração dos fatos decorre logicamente a conclusão.

No mérito, a pretensão é procedente.

Como é sabido, o pagamento através de consignação é um meio indireto de que dispõe o devedor de exonerar-se do vínculo obrigacional, consistindo no depósito judicial da coisa devida, nos casos e formas legais, tendo lugar quando se vislumbrar a ocorrência de quaisquer das hipóteses elencadas no artigo 335 do Código Civil.

Para que a consignação tenha efeito de pagamento, diz a lei (art.336, CC) que o depósito deverá ser promovido no tempo e modo exigidos, ou seja, de acordo com os termos do negócio jurídico que lhe deu causa, sob pena de não ter nenhuma eficácia.

Flávio Renato Correia de Almeida e Eduardo Talamini, em obra coordenada por Luiz Rodrigues Wambier, ensinam que "(...) a consignação em pagamento é uma das formas de extinção das obrigações (art. 972 do Código Civil). Ao devedor não interessa, em regra, a incômoda situação de ver-se constituído em mora. Quando alguém assume uma obrigação, tem-se, como regra geral, que é de seu interesse cumpri-la, na forma e tempo pactuados. Por isso, na hipótese de não conseguir que o credor aceite o pagamento, cabe ao devedor a ação de consignação em pagamento, que tem a precípua função de desobrigá-lo do pacto assumido" (Curso Avançado de Processo Civil, RT, 3ª ed., vol. III, p. 139).

Na esteira do escólio de Antônio Carlos Marcato, assentado na obra Procedimentos Especiais, Atlas, 10ª ed., p. 85: "O pagamento representa o modo normal de extinção da obrigação, pelo cumprimento voluntário da prestação devida. (...) não sendo a obrigação voluntariamente desfeita dessa forma - seja porque o credor se recusou injustificadamente a receber o pagamento, ou a dar quitação, seja porque o devedor ficou impedido, por motivos alheios à sua vontade, de realizar o pagamento (v. CC, art. 335) -, resta a este último, ou a qualquer outro interessado na extinção da obrigação, a via anormal do pagamento por consignação (CC, arts. 334 a 345.).”

Pois bem, no caso dos autos, verificou-se ser fato incontroverso (art. 334, inc. III, do CPC) estarem os autores inadimplentes em relação ao pagamento das quatro últimas prestações do instrumento particular de compra e venda firmado com a ré, mais precisamente daquelas vencidas nos meses de janeiro a abril de 2010.

Alegaram os demandantes, no entanto, que avençaram com a ré a quitação posterior de sua dívida, com o que teria ela acordado. Tal fato, além de impugnado pela demandada, não restou sequer remotamente comprovado no processo, cujo julgamento antecipado foi proposto pelos autores, razão pela qual não pode ser aceito como verídico.

E, assentadas essas premissas, estando em mora os autores, em um olhar inicial acerca dos fatos seria o caso de se julgar improcedentes os pedidos, por se entender legítima a recusa da ré na percepção dos valores atrasados. Ocorre que, em uma análise mais amiúde, notadamente em vista dos documentos juntados às fls. 13/20, entendo por bem, excepcionalmente, aplicar ao caso a teoria do adimplemento substancial do contrato.

Segundo a melhor doutrina, não prevista formalmente no Código Civil de 2002, mas consubstanciada nos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato, da vedação ao abuso de direito e ao enriquecimento sem causa, a teoria do adimplemento substancial sustenta que não se deve considerar resolvida a obrigação quando a atividade do devedor, embora não tenha sido perfeita ou não atingido plenamente o fim proposto, aproxima-se consideravelmente do seu resultado final. Conforme as peculiaridades do caso, a teoria do adimplemento substancial atua como um instrumento de equidade diante da situação fático-jurídica, permitindo soluções razoáveis e sensatas.

Ademais, referida teoria vem ganhando campo na jurisprudência, consoante se infere do acórdão proferido pelo colendo Superior Tribunal de Justiça, assim ementado: “ALIENAÇAO FIDUCIÁRIA. Busca e apreensão. Falta da última prestação. Adimplemento substancial. O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso. Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela. Não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse. Recurso não conhecido” (STJ/REsp 272739 / MG).

No caso dos autos, como já se disse, de todas as parcelas cujo pagamento deveria realizar a autora, somente restou inadimplente em quatro delas, ou seja, descumpriu somente cerca de 12% do contrato.

Não bastasse, válido ponderar que, conquanto o contrato de fls. 13/14 efetivamente preveja a rescisão na hipótese de inadimplência de três parcelas, deixou a ré de exercitar esse direito. Vale dizer, malgrado se encontrassem os autores em mora desde janeiro de 2010, em nenhum momento exercitou a ré o direito de rescindir o contrato, ajuizando a r. ação de reintegração de posse.

Segundo o princípio da supressio, a inércia de uma das partes em exercer direito ou faculdade reduz o conteúdo obrigacional, gerando na outra parte uma legítima expectativa. E, na exata medida em que a ré deixou os autores permanecerem no imóvel, malgrado em mora, por considerável tempo, não pode agora simplesmente recusar o pagamento das parcelas residuais.

Em outras palavras, a inércia da ré em exercer seu direito por prazo considerável, restou por incutir nos autores a expectativa de que tal não ocorreria, de modo a se tornar válida a consignação das parcelas remanescentes.

Assim, diante da ausência de impugnação específica da ré a respeito do montante depositado, há como se presumir correto aquele consignado, dando-se por extinta a obrigação existente.

A ressalva manifestada pela ré no sentido de lhe serem os autores devedores em relação a tributos pagos, vencidos já durante o período em que estavam exercendo a posse do imóvel, além de não comprovado o fato, sequer hipotéticamente teria o condão de improceder os reclamos deduzidos. A rigor, se efetivamente algo lhes devem os promissários comprovadores, caberá à ré ajuizar a respectiva ação de cobrança.

Quitado o contrato, cabe à demandada outorgar a respectiva escrita pública de venda do bem. Segundo a cláusula 13ª do contrato (fl. 14), “a escritura definitiva de venda e compra, uma vez cumpridas todas as cláusulas do presente contrato, será outorgada aos promitentes compradores ou à quem estes indicarem.”  As custas para tanto, todavia, deverão ser arcadas pelos autores de acordo com a cláusula 4ª.

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTES os pedidos deduzidos por L e N em face de R, resolvendo o mérito da lide, ex vi do art. 269, inc. I, do Código de Processo Civil. Em conseqüência:

I) AUTORIZO os autores a proceder o depósito judicial das quatro últimas parcelas do contrato de fls. 13/14, confirmando, assim, a liminar de fl. 28;

II) DECLARO extintas as obrigações dos autores com relação às prestações depositadas;

III) DETERMINO à ré que outorgue a escritura de compra e venda do imóvel indicado no contrato de fls. 13/14 em favor dos autores, no prazo de 15 dias a contar da data em que notificada acerca do cartório em que será realizado o procedimento, sob pena de multa diária de R$100,00, limitada a 30 dias. Tal cautela (notificação) afigura-se indispensável, porquanto as despesas para tanto correrão por conta dos autores neste sentido vide STJ; AgRg no Agravo de Instrumento nº 660.015/RS; J. em 13/09/2005).

Sucumbente, a parte perdedora arcará com o pagamento das custas, das despesas processuais e dos honorários advocatícios, arbitrados estes, por equidade, em R$ 500,00, sobre os quais incidirão correção e juros legais. Tudo em vista do grau de zelo, do lugar de prestação do serviço, da natureza e importância da causa, do trabalho realizado pelo(s) procurador(es) da parte vencedora e do tempo exigido, ex vi do § 4º do art. 20 do CPC.

Fixo os honorários advocatícios em 100% do item respectivo da tabela do convênio OAB – Defensoria ao(s) procurador(es) nomeado(s) por este convênio. Expeça-se certidão com trânsito em julgado.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se Após o trânsito em julgado, autorizo o levantamento dos depósitos efetivados nos autos em favor da ré.

Andradina (SP), 31 de janeiro de 2012.

Paulo Alexandre Rodrigues Coutinho
           Juiz de Direito

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