6 de fevereiro de 2012

Justiça e Realidade


Autos no 192-16.2010.8.16.0145 – Ação Penal

SENTENÇA

I. RELATÓRIO

O Representante do Ministério Público, com base no incluso inquérito policial, ofereceu denúncia em face de J, brasileiro, convivente, nascido aos XXXX, com 50 anos de idade na data dos fatos, filho de A e B, portador do RG nº XXXXXPR, domiciliado nesta comarca de Ribeirão do Pinhal/PR, à Rua XXXX, como incurso nas sanções do artigo 61 do DEL nº 3.688/41 e art. 217-A do CP, pela prática dos seguintes fatos delituosos:

 FATO 01

“Consta do Inquérito Policial, que em data não precisada, porém em dezembro de 2009, nas proximidades do cemitério de Ribeirão do Pinhal/PR, o denunciado J munido de um pedaço de pau, correu atrás da adolescente F.N.S., de 12 anos de idade, convidando-a para manter, com ele, relações sexuais, dizendo 'vamos fazer amor com o tio, vamos?'.

Segundo apurou-se, o denunciado importunou F.N.S. em local público, qual seja, nas proximidades do cemitério local, de modo ofensivo ao pudor.

FATO 02

“É dos autos, ainda, que, em 05 de janeiro de 2010, também nas proximidades de Ribeirão do Pinhal/PR, o denunciado J puxou a criança A.D.A.M.L., de 07 anos de idade, pelo braço e a levou para o meio de uma plantação, tirou-lhe a roupa e tentou beijá-la, colocando o pênis em sua nádega.

Na ocasião, J segurou a vítima pelo braço valendo-se de uma de suas mãos e com a outra se masturbou até ejacular.

Tão logo a vítima começou a clamar por socorro, o denunciado desferiu-lhe um tapa e a ameaçou, dizendo que da próxima vez que a pegasse iria matá-la.”.

A denúncia foi recebida em 05.04.2010 (fl. 41).

Citado (fl. 49, V.), o réu apresentou resposta à acusação por defensor nomeado, oportunidade na qual arrolou duas testemunhas (fl. 51-2).
                                  
Não sendo caso de absolvição sumária (art. 397 do CPP), foi realizada audiência na qual foram ouvidas seis testemunhas arroladas na denúncia, sendo o réu interrogado ao final.

O Representante do Ministério Público, em alegações finais, pugnou pela condenação do réu como incurso nas penas dos artigos 217-A, caput, c.c. art. 69, ambos do Código Penal, c.c. art. 61, caput da Lei de Contravenções Penais, dizendo que as provas coligidas aos autos são suficientes para comprovar o cometimento do ilícito por parte do acusado (fls. 73-85).

O Defensor, em derradeiras alegações, requereu a absolvição do acusado por ausência de provas suficientes que embasem o decreto condenatório (fls. 87-95).

É o que importa relatar. DECIDO.


II. FUNDAMENTAÇÃO

A missão do Poder Judiciário, sob a responsabilidade de seus Magistrados, é fazer Justiça. É muito mais que aplicar a lei ao caso concreto. É ter o poder de desconsiderá-la, quando claramente injusta, homenageando a célebre frase de um dos mais notáveis operadores do Direito que já passou por este plano da existência, Eduardo Juan Couture (cujo prenome por homenagem a ele passei a meu filho):

Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça

Há pouco tempo, mais exatamente no dia 17 de dezembro de 2010, jurei perante o Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que faria da minha vida uma luta incansável pela Justiça, e para todos.

Ainda acredito nisso. Apesar da forte campanha deflagrada pelo Poder Executivo para enfraquecer, desmoralizar e, assim, encabrestar o Poder Judiciário, eu ainda acredito na Justiça. E luto, bravamente, se necessário pegando em armas, por ela. Agora, ainda mais, pois tive a oportunidade de conhecer um grande número de magistrados, e de ver que em sua enorme maioria se tratam de pessoas maravilhosas, trabalhadoras, vocacionadas ao cargo e que muito honram a toga que merecidamente vestem.

Fazer justiça não é tarefa fácil. Estamos a lidar com vidas humanas que se tenta retratar através de letras e números, em volumosos processos, para cuja leitura há muito pouco tempo disponível.

No meu curto período de exercício desta nobre missão, procurei sempre lembrar também da célebre lição que me foi ensinada por meu querido mestre, Prof. Romeu Felipe Bacellar Filho, e que está inscrita na pedra fundamental do Instituto de Direito que leva o nome de seu pai, citando ninguém menos que Luis Recaséns Siches: “Ao aplicador do Direito não é dado desconhecer que por trás da letra fria da lei há sempre uma vida humana a ser considerada”.

Mais difícil do que lidar com vidas é lidar com pessoas. É incrível a capacidade que as pessoas têm de serem más, ardilosas, canalhas. A palavra mais adequada aqui seria de baixo calão. Custo a crer o quanto isso se repete no dia a dia, e o quanto as mentiras se acumulam.

Também é verdade que o acusado pobre, de poucas luzes, reincidente e, para piorar, foragido, quase sempre já começa o processo condenado na cabeça do Juiz. Por mais absurdo que seja a máxima do “quem não deve não teme” ainda acaba condicionando nosso pensamento em algumas oportunidades.

Fato é que chegou às minhas mãos o presente processo criminal. Trata-se de ação penal deflagrada pelo Ministério Público, contra pessoa pobre, sem estudos, e com antecedentes criminais desfavoráveis. Uma daquelas ações nas quais eu mesmo costumo dizer que o processo é “mero entrave burocrático entre a denúncia e a condenação”.

Isso acontece com muita frequência. Quase sempre a situação verificada desde o flagrante tende a se perpetuar ao longo da instrução, que, de garantia fundamental, passa a mero entrave burocrático, razão pela qual eu defendo a instituição do plea bargain no Brasil.

De qualquer modo, sempre prestei muita atenção aos processos criminais, mesmo já antevendo uma provável, quando não certa, condenação. Sempre leio cada página antes de defenestrar o indigitado para uma das sórdidas e fétidas masmorras que chamamos carinhosamente de “Cadeias Públicas”, “Penitenciárias”, Unidades de Ressocialização”, ou qualquer outro eufemismo semelhante.

Este processo não foi diferente. Especialmente quando a acusação diz respeito a crimes contra os costumes, e ainda mais quando a vítima é menor de idade, tenho plena consciência de que a sentença não implicará mera privação da liberdade, mas, sim, anos e mais anos de tortura (principalmente sexual) e desgraça, quando não a morte.

Não vou ser hipócrita e dizer que isso não me parece justo para aqueles que efetivamente praticaram tais crimes. Contudo, o cuidado nestes feitos é sempre triplicado.

A sentença condenatória estava pronta, na qual inclusive constava decretação de prisão preventiva. Foi preparada por minha assessora com base em outras sentenças similares que fiz no passado, e veio para mim para a devida correção.

Ao chegar na página 63 dos autos, algo me chamou a atenção. O nome da vítima: F.

Sendo também Juiz da Vara da Infância e Juventude, conheço bem esta jovem. Trata-se de adolescente extremamente problemática, debochada, e repleta de desvalores que trazem sérias dúvidas à veracidade de qualquer fato que venha a relatar. Não merece a mínima credibilidade!

Dizem que a Justiça é cega. Bom, talvez a Justiça seja, mas o Juiz não é. EU não sou.

Reavaliei o processo e constatei que às alegações da vítima não correspondia absolutamente nenhum princípio de prova material. Nada. Nem as tais roupas rasgadas, nem o semem que o acusado teria ejaculado, nada. Foi dito que o acusado a machucara com um pedaço de pau, enquanto a violentava, mas também não foi feito o exame de corpo de delito correspondente.

Não há nada, além da palavra das supostas vítimas, que corrobore a acusação. Pelo menos nada além dos nossos próprios preconceitos.

É certo que a palavra da vítima tem grande força, especialmente em crimes de natureza sexual, frequentemente cometidos à sorrelfa. Mas seu valor não é absoluto, especialmente quando a vítima não é totalmente isenta e conhece o acusado.

Uma das grandes vantagens de exercer a Magistratura nas entrâncias iniciais é poder conhecer as pessoas, saber quem são os jurisdicionados. E todos se conhecem. É impressionante!

Percebendo estas fortes incoerências no processo, chamei o Sr. Admir, funcionário do Cartório Criminal há mais de três décadas, e perguntei sobre o caso.

Ele me disse que o acusado é um pobre coitado, e que, inclusive, está foragido por medo da condenação. Disse mais: que as supostas vítimas, como eu já sabia, são conhecidas por seu comportamento vulgar e libertinoso na cidade, apesar de sua pouca idade.

Recentemente, aliás, determinei a internação de F por diversos atos infracionais, e na audiência de apresentação soube que ela estava, aos treze anos de idade, convivendo “maritalmente” com um rapaz de cerca de dezessete anos.

Disse-me ainda o funcionário do cartório que essas meninas são de família extremamente problemática na comunidade. Aliás, sabe-se que as supostas vítimas frequentemente “mexem” com homens da cidade, de forma lasciva, frontalmente incompatível com a pouca idade que ostentam.

Enquanto conversava com ele, adentrou a sala a Sra. Elisabete Maria da Silva, provavelmente a melhor Conselheira Tutelar do Estado do Paraná. Ela sabe tudo, de todos, e zela pelas crianças da Comarca como se fossem suas próprias filhas.

Perguntei a ela sobre o caso, e a resposta foi imediata: “é tudo mentira delas”! Pelo que soube, partindo da própria F, as supostas vítimas extorquiram o ora acusado pela quantia de cem reais, sob ameaça de o acusarem de estupro, tal qual ocorreu. Também não é segredo que ela se prostitui em toda a região...

E, ainda segundo Bete, tudo isso foi dito pela própria F, em uma das inúmeras intervenções do Conselho Tutelar junto àquela família.

Aliás, em conversa com o Dr. Erinton, digno Promotor de Justiça desta Comarca, foi-me dito que as alegações finais, nas quais pediu a condenação, foi uma das primeiras que fez logo que assumiu a comarca, ou seja, antes que ele conhecesse bem a suposta vítima, e que, se fosse hoje, é bem provável que viesse a pedir a absolvição.

Pois é, a sentença condenatória estava pronta, mas a dúvida trazida por estes fatos não permite sua prolação.

Para piorar, não fui eu quem presidiu a audiência instrutória, e nem tampouco fora esta realizada por meio audiovisual, o que impede o contato do magistrado com o acusado, a fim de que se possa extrair a verdade de suas palavras. Penso agora que o princípio da identidade física do Juiz seja realmente mais importante do que eu julgara no passado.

Pensei em converter o feito em diligência, para ouvir todos novamente. Contudo, fato é que estou convencido de que os fatos não ocorreram da forma como foram relatados, e realizar novo ato instrutório não trará nenhum elemento novo capaz de extinguir todas as minhas dúvidas quanto à conduta do acusado.

O máximo que ocorreria seria a plena certeza de sua inocência, mas isto não é necessário para a absolvição. Basta a dúvida razoável, que já existe.

III. DISPOSITIVO

Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE a pretensão punitiva veiculada na denúncia, com fundamento no art. 386, VII do Código de Processo Penal, com relação a ambos os fatos, razão pela qual ABSOLVO o acusado J das imputações que ora lhe foram direcionadas.

Sem custas em razão da absolvição.

Fixo os honorários do ilustre defensor nomeado em R$ 1.200,00, nos termos da Tabela de Honorários da OAB/PR, observando que tal verba será custeada pelo Estado do Paraná, a teor do disposto no art. 22, § 1º, da Lei nº 8.906/94, consoante determina o Ofício Circular nº 21/2011-DA/GP.

Após o trânsito em julgado, arquivem-se estes autos mediante as comunicações e baixas necessárias.

 Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpra-se.
Ribeirão do Pinhal, 1 de fevereiro de 2012.
 
SERGIO BERNARDINETTI
Juiz de Direito

6 comentários:

  1. Cada vez mais vemos casos como esses sendo julgados. Independente do resultado, da decisão do juiz... acabamos vendo a fragilidade das nossas crianças e das mentes humadas, dos adultos.

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  2. Adorei a sentença! Penso que pais permissivos e ausentes, bem como a mídia, são os maiores responsáveis por problemas dessa natureza levando as adolescentes a terem interesses precoces quando o assunto é sexo.
    O que falta hoje em dia são parâmetros que deveriam ser estabelecidos pelos pais desde a infância.

    Mirian

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  3. Cumprimento o Juiz pela bela sentença e cautela sobre o caso. De fato, os pré-conceitos que não são dados em casos assim, de crimes contra o costume, acabam por tornar o processo um "mero entrave burocrático" a ser vencido. Novamente, parabéns ao subscrito. Paulo Coutinho - Juiz da 2ª Vara de Andradina

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  4. A 'inocência' das crianças não existe mais, e o excesso de proteção, ou excesso de permissividade dos pais corrobora para isso.
    Ou remete-se para a edução, baseada em bons conceitos e morais, ou têm-se outros casos como esse.
    Mas o que se esperar de meros 'reprodutores', que largar as crianças ao mundo? Quem deveria ser realmente julgado?

    Um forte abraço aos amigos, blogueiros/juizes que nos mostram esse lado do processo.
    A.B.

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  5. Enquanto o povo é enganado pela mídia que põe em pauta a honra de todos os magistrados brasileiros (os bons acabam pagando pelos poucos ruins), eu, como advogado chego a me emocionar e creio ainda mais na justiça deste País ao ler uma sentença como esta. Nobre Magistrado, ainda chegará o dia em que a grande massa descobrirá que há muitos homens decentes como o senhor no Judiciário Brasileiro. Este é o tipo de sentença que costumo mostrar aos meus alunos na Faculdade de Direito para que saibam que nosso País, entre a decência e o trololó da mídia só tem uma escolha a fazer. Leio este texto pela manhã, obrigado por me proporcionar um excelente começo de dia.
    Carlos Bruno

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  6. Imagino como seja difícil mudar suas convicções iniciais sobre determinado caso, pois nem sempre aquilo que está no papel, corresponde à realidade...além disso este é o tipo de caso que demanda a percepção apurada do magistrado...
    É bom saber que temos magistrados que buscam a verdade e aplicam a justiça.
    Maria Emilia

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