4 de fevereiro de 2012

Reconhecimento pelo réu da autoria por ocasião do exame de insanidade mental


1ª Vara Judicial da Comarca de Registro
Autos nº 358/2009
Autor:                       Ministério Público do Estado de São Paulo
Denunciado:             A
                                
S  E  N  T  E  N  Ç  A

Vistos, etc.
1. Relatório:
A (qualificado à fl. 14) foi denunciado como incurso nas sanções do artigo 214, combinado com o art. 224, alínea “a”, ambos do Código Penal em sua anterior redação. Segundo a descrição fática contida na denúncia no dia 25 de junho de 2009 o denunciado pegou a criança vítima pelos braços e a conduziu até um canil, local onde tirou sua calça e calcinha, tendo esfregado o pênis várias vezes nas nádegas dela (fazendo um “créu”) e tendo depois passado as mãos na vagina e nas nádegas da ofendida, bem como tendo pegado a mão dela e colocado em seu pênis (fls. 1D-2D). 
A denúncia foi recebida em 4 de novembro de 2009 (fls. 39-40).
Citado (fl. 45), o réu apresentou resposta à acusação (fls. 49-50).
Confirmado o recebimento da denúncia (fl. 51), durante a instrução foram inquiridas a ofendida, três testemunhas arroladas pelo parquet, três comuns e três da defesa, sendo o réu interrogado (fls. 63-73).
Realizou-se incidente de insanidade mental em apenso.
Em sede de alegações finais a acusação postulou a prolação de sentença condenatória, nos moldes da denúncia (fls. 88-94). A defesa sustentou tese de insuficiência probatória, apresentando reservas ao depoimento infantil e concluindo pela atipicidade da conduta ou pela absolvição (fls. 99-102).    
É o relatório. Decido.

2. Fundamentação:
Tendo em vista a alteração legislativa quanto aos crimes contra a dignidade sexual (Lei nº 12.015/09), a presente decisão deve primeiramente delimitar o direito aplicável ao caso.
A revogação do artigo 224 do Código Penal não implica em abolitio criminis. É que para que ocorra abolitio criminis se faz necessário que a lei posterior deixe de considerar o fato como crime (CP, art. 2º, caput); vale dizer, é necessário que na lei antiga o fato fosse crime e na lei nova não mais o seja. E isso não ocorre na espécie. A lei nova também prevê a conduta como crime, bastando a conjunção carnal ou o ato libidinoso com menor de 14 anos de idade, independentemente da ocorrência de violência física ou moral; tal previsão está no caput do atual art. 217-A do Código Penal (“ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”). Ou seja, o fato continua sendo crime, com a diferença de que agora é punido de forma muito mais gravosa, com pena de 8 a 15 anos de reclusão. Logo, não há abolitio criminis e a lei nova prevê sanção mais severa, razão pela qual há de ser aplicada a legislação anterior à Lei nº 12.015/09, por ser mais benéfica ao acusado, na medida em que a lei nova não pode retroagir para prejudicar o réu (CRFB, art. 5º, inciso XL).
Destarte, concluindo pela persistência da aplicação da anterior legislação ao fato, passo ao exame do mérito da causa, que guarda procedência.
A ausência de comprovação pericial não possui relevância para o deslinde do feito, na medida em que as modalidades de atos libidinosos imputados não são das que deixam vestígios, sendo inaplicável, portanto, o disposto no art. 158 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: “O laudo pericial não é fundamental para comprovação do delito de atentado violento ao pudor uma vez que, em regra, não costuma deixar vestígios, podendo ser verificado mediante outros elementos probatórios, especialmente o depoimento da vítima” (STJ, REsp 906466/MG, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 13.4.2009).
E a prova dos autos é hábil a assegurar que o crime existiu e que o réu foi o seu autor. Com efeito, a ofendida assim o confirmou em juízo (fl. 63) e as declarações dela se encontram inclusive corroboradas pelas declarações de seu irmão (o qual percebeu ter ocorrido algo entre o acusado e a vítima no canil – fl. 65). A criança também confidenciou o episódio, de modo sincero, para a sua mãe (fl. 64) e para a mãe de uma amiga (fl. 68). Outra testemunha também do sexo feminino relatou que quando era criança foi alvo de importunação lasciva praticada pelo réu (fl. 66). Tal somatório de elementos é suficiente a autorizar a solução condenatória.  
De se ver, ademais, que a tese de que o depoimento infantil não guarda credibilidade não merece ser acolhida, pois “em tema de crime sexual, a palavra do menor é da maior valia e se sobrepõe à negativa do réu” (RJTJSP 131/479). Oportuno registrar que em situação muito semelhante já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
“Em crimes da natureza do aqui considerado, rotineiramente praticado às escondidas, presentes apenas os agentes ativo e passivo da infração, a palavra da vítima é de fundamental importância na elucidação da autoria. Se não é desmentida, se não se revela ostensivamente mentirosa ou contrariada, o que cumpre é aceitá-la sem dúvida. Pois, na verdade, não se compreende proponha-se a vítima, ainda que tendo apenas 11 anos, a inescrupulosamente a incriminar alguém, atribuindo-lhe falsa autoria, sem que razões se vislumbrem para tanto. Máxime se essa incriminação gera para o incriminador a constrangedora obrigação de vir a relatar para terceiros estranhos toda a humilhação, a vergonha, a desdita por que passou. Nem se diga, por outro lado, que se trata de incriminação partida de uma menor, na tentativa de desacreditar as declarações da ofendida que, aqui, intensamente apontam o apelante como autor do atentado à liberdade sexual. A criança, a despeito de sua maturidade, não é mentirosa por princípio, especialmente quando se trata de imputar a alguém, contra quem nada tem aparentemente, crime tão grave quanto comprometedor de sua intimidade e de seu anonimato” (TJSP, AC, rel. Des. Canguçú de Almeida, RT 663/285).
Isso tudo não bastasse, espancando qualquer dúvida, extrai-se que durante o exame de insanidade mental o acusado narrou acerca do fato que “...não sabe o motivo de ter abusado sexualmente da menina. Nega ter tentado outras vezes. Não estava embriagado, pois não tinha ‘bebido’ nesse dia e nunca usou drogas. Nesse aconteceu uma brincadeira que estava dançando, ela ficou olhando, achou que era brincadeira e de repente viu que ela gostou e deixou se levar. Nunca havia feito isso, nem antes, nem depois” (fl. 79 do apenso). Ou seja, há nos autos informação emanada pelo próprio réu que confirma a existência e a autoria do fato, o que lança por terra as negativas que apresentou em solo policial e em juízo.  
Portanto, a conduta humana se subsume ao crime previsto no artigo 214, combinado com o art. 224, alínea “a”, ambos do Código Penal na anterior redação, de modo que resultam repelidas as teses defensivas. Estão também verificadas a antijuridicidade e a culpabilidade (ressaltando-se que a perícia médica concluiu ser o réu imputável).
3. Dispositivo:
Diante do exposto, julgo procedente a pretensão punitiva para o fim de CONDENAR A como incurso nas sanções do artigo 214, combinado com o art. 224, alínea “a”, ambos do Código Penal na anterior redação.
Nessas condições e partindo do mínimo legal (ou seja, seis anos de reclusão), passo à dosimetria e individualização da pena, com observância ao sistema trifásico adotado pelo Código Penal (CP, art. 68).
Na primeira fase não reputo presentes circunstâncias judiciais desfavoráveis que já não estejam contidas no próprio tipo legal de crime. Na segunda fase não ocorrem atenuantes ou agravantes. Na terceira fase também não incidem causas de aumento ou de diminuição de pena, razão pela qual a pena definitiva queda-se no mínimo legal: 6 (seis) anos de reclusão.
Como “a partir do julgamento do habeas corpus nº 88.664/GO, houve uma mudança no entendimento da Sexta Turma [do Superior Tribunal de Justiça], para que não mais se considerassem hediondos os crimes de estupro e atentado violento ao pudor praticados antes da Lei nº 12.015/09 [que teve vigência a partir de 10.8.2009] quando cometidos mediante violência presumida” (STJ, HC nº 128648/RJ, rel. Min. Og Fernandes, DJe 3.11.2009), nos termos do art. 33, § 2º, alínea “b”, fixo o regime semiaberto para início de cumprimento da pena privativa de liberdade, a ser executado em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar, de acordo com a disponibilidade do sistema penitenciário, com observância às regras do art. 35 do CP. Esclareço que deixo de fixar regime prisional mais severo (fechado) em razão de que não chegou a ocorrer penetração e de que não há nos autos notícia de que o acusado esteja a atuar como um predador sexual.
São incabíveis a substituição por penas restritivas de direitos e o sursis por conta da quantidade da pena (art. 44, inciso I, e art. 77, caput, ambos do CP). 
Resumo da sentença:
A denúncia foi julgada procedente. O acusado A foi condenado como incurso nas sanções do artigo 214, combinado com o art. 224, alínea “a”, ambos do Código Penal na anterior redação, devendo cumprir pena de 6 (seis) anos de reclusão inicialmente em regime semiaberto.
Disposições finais:
(a) Tendo respondido em liberdade a fase de instrução, comparecido a todos os atos do processo e considerando que o fato ocorreu há mais de dois anos, não havendo notícia de que na atualidade esteja o réu a agir como um predador sexual, poderá apelar em liberdade (CPP, art. 387, parágrafo único).
(b) Nos termos do art. 804 do CPP, condeno o acusado ao pagamento das custas processuais, com a ressalva do artigo 12 da Lei n. 1.060/50.
(c) Considerando os prejuízos psicológicos intrinsecamente experimentados pela ofendida, que ainda se encontrava em especial fase de formação quando sexualmente molestada, os quais poderão acarretar traumas a serem carregados pelo resto de sua vida, fixo em R$ 20.000,00 (vinte mil reais) o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração (CPP, art. 387, inciso IV).
(d) Incide no caso apenas o efeito genérico da condenação contido no inciso I do art. 91 do CP, não incidindo quaisquer dos específicos (CP, art. 92).
(e) Em atenção ao art. 15, inciso III, da Constituição da República, declaro a suspensão dos direitos políticos do sentenciado.
(f) Considerando que eventual recurso sobre a sentença condenatória terá efeito suspensivo, em atenção à Resolução nº 19 do Conselho Nacional de Justiça, deixo de determinar a expedição de guia de recolhimento provisório.
(g) Em observância ao item 22, “d”, do Capítulo V das Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, e com a qualificação completa do sentenciado, comunique-se o desfecho da ação penal ao serviço distribuidor e ao Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD).
(h) Oportunamente, expeça-se certidão de honorários em prol do ilustre advogado que atuou no feito.
(i) Após o trânsito em julgado: (i.1) lance-se o nome do condenado no rol dos culpados (CPP, art. 393, inciso II); (i.2) oficie-se ao juízo eleitoral do local do domicílio do sentenciado comunicando a suspensão dos direitos políticos; e (i.3) expeça-se a definitiva guia de recolhimento para execução da pena.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
De Pariquera-Açu para Registro, autodata.

AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

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