18 de dezembro de 2011

Caso curioso: desobediência e direção perigosa

Juizado Especial Criminal da Comarca de Cananéia
Autos nº 265/2010
Autor:                       Ministério Público do Estado de São Paulo
Denunciado:             XXXX

S  E  N  T  E  N  Ç  A

Vistos, etc.
1. Relatório:
XXXX foi denunciado em razão de desobediência e direção perigosa ocorridas em 26 de novembro de 2010 (fls. 2-4).
O feito recebeu o procedimento comum ordinário com a anuência das partes (fl. 61), de modo que o recebimento da denúncia ocorreu em 1º de abril de 2011 (fl. 34) e, depois da resposta (fls. 42-50), restou confirmado (fl. 52).
Durante a instrução foram inquiridas cinco testemunhas (fls. 62-66) e o réu foi interrogado (fl. 67).
Em sede de alegações finais a acusação pugnou pela procedência da denúncia (fls. 69-73), enquanto que a defesa sustentou tese absolutória por insuficiência probatória, ausência de perigo concreto e que a previsão de infrações administrativas no Código de Trânsito Brasileiro derrogara as normas criminais (fls. 75-78).
É o relatório. Decido.

2. Fundamentação:
A pretensão punitiva é procedente.
Considero que a prova dos autos é suficientemente hábil a demonstrar que o acusado praticou a direção perigosa e a desobediência.
As testemunhas de defesa (fls. 64-66) não presenciaram os exatos momentos das infrações, de modo que seus testemunhos de nada servem para esclarecer os fatos. Até porque nenhuma delas disse ter visto o réu desobedecer a ordem de parada (fugindo da abordagem), fato esse que ele próprio admitiu tanto em solo policial (fl. 8) quanto em juízo (fl. 67). Ora, se o próprio acusado confirmou ter desobedecido a ordem de parada e se nenhuma das testemunhas viu tal momento, suas declarações não são hábeis a assegurar que o réu não tenha praticado as infrações.
Já bem diferentes foram as provas coligidas pela acusação. Os testemunhos dos policiais (fls. 62 e 63) estão em harmonia e sem quaisquer contradições, tendo cada um se limitado a relatar exatamente o que presenciou. Dos seus testemunhos é possível reconstituir a dinâmica dos fatos, que foi a seguinte: o primeiro policial, ao sair para trabalhar, avistou o acusado empinando a motocicleta na lombada da avenida principal de Cananéia (próximo ao restaurante Porto Camarão); ao entrar de serviço novamente encontrou o acusado na avenida e em razão daquele episódio que havia recém-presenciado efetuou a ordem de parada (sendo que a viatura estava com todos os sinais luminosos ligados) para realizar abordagem, ocasião em que o réu se evadiu (tendo desobedecido a ordem de parada); deslocando-se até a residência do acusado, ele novamente se evadiu; enquanto o primeiro policial persistiu tentando localizar o réu com a viatura, o outro policial permaneceu aguardando nas proximidades da residência; novamente o acusado se aproximou da residência empinando e novamente fugiu da abordagem pelo segundo policial, também empinando durante a fuga; em seguida ele deixou a motocicleta na casa de outra pessoa e retornou a pé para casa, quando então finalmente foi abordado.   
As declarações dos policiais não deixam margem para dúvidas. Os fatos se desencadearam tal qual narraram. O réu efetuou pelo menos duas direções perigosas e três desobediências. Todavia, haverá ser punido por apenas uma direção perigosa e por uma desobediência em razão de que a pluralidade de condutas semelhantes ocorreu em um mesmo contexto fático, durante a mesma diligência policial.
É a palavra do réu que não comporta credibilidade. Note-se que apesar de haver assumido parcela de seu dolo, ainda assim tentou diminuir sua responsabilidade, impondo reservas à sua conduta. Utilizou-se da conhecida “técnica” (conhecida na praxe forense) em que se assume um fato verdadeiro para ganhar credibilidade, para na sequência se tentar encobrir ou minorar as consequências dos demais atos. Veja-se. Assumiu para o seu pai (fl. 64) que não atendeu a ordem de parada por ter tido medo de que a abordagem fosse truculenta; todavia, pela inteligência que demonstrou durante o feito e em audiência, quer parecer que tinha ele conhecimento e discernimento suficiente para saber que a chance de uma abordagem ser truculenta em plena avenida principal da cidade é infinitamente menor do que em uma rua secundária (no entanto, segundo o réu, teria ele optado por não ser abordado na avenida principal, mas não se preocupou de depois encontrar os policiais quando já estava a pé em uma rua secundária, sendo que sabia que os policiais lá estavam, pois minutos antes já havia fugido do mesmo local em sua motocicleta ao lá encontrar o segundo policial). Seu próprio pai reconheceu que nunca viu policiais abordarem suspeitos com truculência na avenida principal e que a única vez em que viu isso acontecer foi em local distinto e não eram os mesmos policiais que atuaram no caso dos autos (fl. 64). Continuando, o acusado disse ser “perseguido” pela polícia, perseguição essa que seria realizada pelo policial S (que não participou do presente caso), mas que S teria parado de persegui-lo, quando passou o policial E a não gostar do réu; ocorre que entre não gostar de alguém e incriminar esse alguém falsamente existe uma enorme distância. Inclusive, disse que já teve problema anterior com o policial L, pois uma vez ele revistou o seu buggie à procura de drogas, mas nada encontrou; ora se o policial revistou o veículo, nada encontrou, não “plantou” drogas e nem prendeu o réu injustamente naquela ocasião, isso também passa longe de ser um problema, consistindo em mera atividade de rotina policial militar. Aliás, é oportuno consignar que nesta região a polícia militar atua de modo eficaz e realiza inúmeras abordagens (sem falsas incriminações), sendo que inclusive este e outros magistrados já foram abordados pelos senhores policiais militares em pluralidade de oportunidades, o que demonstra que as abordagens não são utilizadas como instrumento de perseguição. Inclusive, se fossem os policiais “maus” a ponto de incriminar falsamente alguém, quer parecer que o fariam com alguma acusação bem mais séria do que com infrações penais cuja legislação prevê punições pífias.  
Então, enquanto de um lado (pela acusação) se tem a palavra firme e harmônica dos policiais, de outro (pela defesa) se tem apenas o testemunho de pessoas que não presenciaram os exatos momentos das infrações e as versões do acusado que não são plausíveis nos aspectos em que nega a direção perigosa e em que tenta amenizar sua responsabilidade pela desobediência.
Há, pois, prova suficiente à condenação.
Quanto à direção perigosa, tenho que ela chegou a colocar “em perigo a segurança alheia”, sendo, portanto, suficiente a causar a incursão na contravenção penal. Isso porque a primeira empinada ocorreu na avenida principal da cidade (geralmente movimentada, sendo que é a que tem o maior fluxo de pessoas diariamente) e tanto havia pessoa próxima, que o próprio primeiro policial estava próximo a ponto de presenciar a conduta. E também quando da aproximação e fuga enquanto o segundo policial aguardava próximo à casa do acusado houve exposição de terceiro a perigo, pois o próprio policial também estava presente no local. Portanto, tenho que ocorreu perigo concreto.
A tese de que a previsão de infrações administrativas no Código de Trânsito Brasileiro derrogara as normas criminais, apesar de sedutora, não é perfilhada por este magistrado.
Primeiro porque a derrogação somente pode ser expressa ou tácita. Na espécie não houve derrogação expressa. Restaria a tácita, mas a tácita exige incompatibilidade entre uma norma e outra. Vale dizer, haveria derrogação tácita se o Código de Trânsito fosse incompatível com a norma penal, chancelando e autorizando que se realizasse direção perigosa ou que se desatendesse a ordem de parada. Ou seja, para que ocorresse a derrogação tácita seria necessário que o Código de Trânsito expressamente previsse como lícitas (ou seja, permitisse) as condutas de desobedecer a ordem de parada e de dirigir perigosamente. E claro que assim não o é, pois não se encontra no Código de Trânsito norma que autorize tais condutas.
Segundo porque a circunstância de o Código de Trânsito prever infrações administrativas análogas às infrações penais apenas tem o condão, a meu entender, de complementar o ordenamento jurídico, trazendo responsabilização em mais de uma esfera. Do contrário, a cada nova mudança de legislação que previsse uma modalidade de responsabilização excluiria todas as demais. Vale dizer (e aqui me sirvo de um exemplo extremo): pelo raciocínio que a tese defensiva pretende, se uma norma previsse que matar alguém sujeita o homicida a uma multa administrativa em favor da fazenda pública (por consistir em violação do pacto social e, como tal, uma lesão à sociedade), haveria a derrogação do artigo 121 do Código Penal. Com a devida vênia, claro que assim não o é.  
Diante desse quadro, estando caracterizadas a antijuridicidade e a culpabilidade, a solução condenatória é medida de rigor, razão por que restam afastadas as teses defensivas, sendo de se assinalar que o concurso de infrações é o material (art. 69 do CP), diante da pluralidade de condutas e de bens jurídicos tutelados.
3. Dispositivo:
Diante do exposto, julgo procedente a pretensão punitiva para o fim de CONDENAR o acusado XXXX, como incurso nas sanções do artigo 330 do Código Penal e do artigo 34 da Lei de Contravenções Penais, em concurso material de infrações (artigo 69 do Código Penal).
Nessas condições e partindo dos mínimos legais, passo à dosimetria das penas, com observância ao sistema trifásico adotado pelo Código Penal (CP, art. 68).
Para o crime de desobediência, na primeira fase a culpabilidade merece maior grau de reprovabilidade, pois apesar de estar caracterizada apenas uma incursão no tipo legal, o seu contexto fático se desdobrou em dois atos de desobediência, quando um ato já seria suficiente à incursão no crime, de modo que elevo a pena em 15 dias de detenção, sem alteração da multa. Na segunda fase incide a atenuante da confissão, motivo pelo qual reduzo a pena também em 15 dias de detenção e também sem alteração da multa. Assim, e como não incidem causas de aumento ou de diminuição de pena (terceira fase), resulta a pena definitiva em 15 dias de detenção e 10 dias-multa.
Para a contravenção de direção perigosa, tendo a lei previsto sanções alternativas, opto pela aplicação da sanção privativa de liberdade, porquanto a culpabilidade do acusado seja mais intensa, seus anteriores apontamentos criminais indiquem que a situação não foi fato isolado em sua vida e porque a versão do acusado a respeito de tal infração se mostrou desprovida de credibilidade, de modo que a pena exclusivamente de multa seria de todo insuficiente a reprimir o modo de agir. Passo, então, a dosar a pena. Na primeira fase a culpabilidade merece maior grau de reprovabilidade, pois apesar de estar caracterizada apenas uma incursão no tipo legal, o seu contexto fático se desdobrou em pelo menos três atos de direção perigosa, quando um ato já seria suficiente à incursão na contravenção, razão pela qual elevo a pena em quinze dias de prisão simples. Na segunda fase não ocorrem atenuantes ou agravantes. No que tange à terceira fase também não se verificam causas de aumento ou de diminuição de pena. Logo, a pena definitiva se queda em 30 dias de prisão simples.
Em função do concurso material de infrações penais (artigo 69 do CP), as penas devem ser aplicadas cumulativamente, de forma que a pena final resulta em 15 (quinze) dias de detenção, 30 (trinta) dias de prisão simples e 10 (dez) dias-multa.   
O regime inicial de cumprimento é o aberto (nos termos do art. 33, § 2º, alínea “c”, do Código Penal).
Tendo em vista que (a) o réu não é reincidente em crime doloso, (b) os ilícitos não foram praticados mediante violência ou grave ameaça à pessoa, (c) apresenta condições pessoais favoráveis em sua maioria e (d) a pena final fixadas foi inferior a um ano, com fundamento no art. 44, § 2º, do Código Penal, substituo a pena privativa de liberdade por uma pena restritiva de direitos, consistente em prestação pecuniária no valor equivalente a 3 (três) salários mínimos em benefício de entidade pública ou privada com destinação social (art. 43, I, e 45, § 1º, do CP), sendo que a seleção da entidade e as condições em que se dará a prestação serão definidas em sede de execução. Anoto que dentre as penas restritivas de direitos optei pela prestação pecuniária por reputar a mais adequada diante das aptidões e condições pessoais do acusado (bem como diante de suas condições econômicas, consoante se infere à fl. 67), assim como por bem atender às finalidades de retribuição e ressocialização pela pena.
Deixo de conceder sursis em virtude da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos se afigurar mais benéfica no caso concreto.
Dada a situação econômica apresentada pelo acusado (fl. 67), fixo o valor do dia-multa em um vigésimo do montante do salário mínimo mensal vigente ao tempo do fato.
Resumo da sentença:
A denúncia foi julgada procedente. O acusado XXXX foi condenado como incurso nas sanções do artigo 330 do Código Penal e do artigo 34 da Lei de Contravenções Penais, em concurso material de infrações (artigo 69 do Código Penal). Deverá cumprir a pena final de 15 (quinze) dias de detenção, 30 (trinta) dias de prisão simples e 10 (dez) dias-multa. A pena privativa de liberdade foi substituída por uma pena restritiva de direitos consistente em prestação pecuniária. A pena de multa foi fixada na proporção de um vigésimo do montante do salário mínimo mensal vigente ao tempo do fato.
Disposições finais:
(a) Tendo em vista a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, poderá o sentenciado recorrer em liberdade.
(b) Não havendo vítima específica, deixo de fixar valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração (CPP, art. 387, inciso IV).
(c) Incide no caso o efeito genérico da condenação contido no inciso I do art. 91 do CP, não incidindo quaisquer dos específicos (CP, art. 92).
(d) Em atenção ao art. 15, inciso III, da Constituição da República declaro a suspensão dos direitos políticos do sentenciado.
(e) Considerando que eventual recurso sobre a sentença condenatória terá efeito suspensivo, em atenção à Resolução nº 19 do Conselho Nacional de Justiça, deixo de determinar a expedição de guia de recolhimento provisório.
(f) Em observância ao item 22, “d”, do Capítulo V das Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, e com a qualificação completa do sentenciado, comunique-se o desfecho da ação penal ao serviço distribuidor e ao Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD).
(g) Após o trânsito em julgado: (g.1) lance-se o nome do condenado no rol dos culpados (CPP, art. 393, inciso II); (g.2) oficie-se ao juízo eleitoral do local do domicílio do sentenciado comunicando a suspensão dos direitos políticos; e (g.3) expeça-se a definitiva guia de recolhimento para execução da pena.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
De Pariquera-Açu para Cananéia, 10 de novembro de 2011.

AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

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