14 de dezembro de 2011

A mentira é um risco.


As mentiras contadas pelo réu nesse caso (e também o seu modo de se portar durante o interrogatório) foram tão absurdas que até deu uma pontinha de vontade de condená-lo. Ele teve muita sorte de ter sido julgado por um juiz e não por um justiceiro.
 
3ª Vara Judicial da Comarca de Registro
Autos nº 180/2010
Autor:                       Ministério Público do Estado de São Paulo
Denunciado:             XXXX

S  E  N  T  E  N  Ç  A

Vistos, etc.
1. Relatório:
XXXX foi denunciado como incurso no artigo 218-B do Código Penal em razão de que no dia 29 de abril de 2010 teria submetido e induzido à prostituição a adolescente A (fls. 1d-2d).
O recebimento da denúncia ocorreu em 11 de novembro de 2010 (fl. 48) e, depois da apresentação de resposta (fls. 54 e 56), restou confirmado (fls. 57-58).
Durante a instrução houve a inquirição de oito testemunhas (fls. 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73 e 74) e o interrogatório (fls. 80-86).
Em alegações finais a acusação pugnou pela condenação, sustentando estar provada a incursão do denunciado no crime (fls. 88-93). A defesa apresentou pedido de absolvição sob os argumentos de que: o réu se limitou a dar uma carona à adolescente; foi alvo de arbitrariedade por parte da atividade policial; tanto os policiais quanto a adolescente mentiram com relação à existência do ajuste do programa sexual; inexistiu crime; não houve contato sexual; a adolescente já estava previamente corrompida; e não tinha conhecimento de que a idade da menina era inferior a 18 anos (fls. 96-102).  
É o relatório. Decido.
2. Fundamentação:
A negativa do acusado é insubsistente.
Suas próprias versões são contraditórias, bastando ver que enquanto na fase policial disse ter perguntado a idade da menina e ela ter respondido que tinha 18 anos (fl. 9), em juízo passou a afirmar que não reparou que “tivesse essa ou aquela idade” (fl. 85). Isso não bastasse, a ausência de credibilidade da sua versão fica estampada pelo modo como se esquivou de responder diretamente às perguntas do juízo (notadamente às fls. 82 e 83) e pela ausência de plausibilidade da própria situação de em plena madrugada supostamente aceitar dar carona para uma desconhecida (embora não tivesse esse costume). Aliás, chega às raias do absurdo a alegação do réu de que quando foi exibir a habilitação “inocentemente caiu” a carteira profissional (fl. 85).
A tese defensiva de que os policiais e a adolescente mentiram e que isso se comprovaria por terem afirmado que o réu estava embriagado quando na realidade o exame de fl. 43 demonstraria que não estava parte de claro erro de premissa. O exame de fl. 43 foi realizado apenas de modo clínico e, ainda assim, mais de duas horas depois de ter ocorrido a abordagem policial. Ou seja, o exame apenas demonstra que mais de duas horas depois da abordagem o réu não apresentava sintomas exteriores de embriaguez. Mas para provar efetiva e pericialmente que não estava embriagado em patamar incompatível com a exigência legal para condução de veículos deveria ter já após a abordagem se submetido ao etilômetro ou ao exame de sangue para aferição de dosagem alcoólica, o que somente não foi realizado porque o próprio acusado expressamente se recusou a tanto (fl. 10). E tanto o acusado tinha mesmo bebido em patamar além do permitido para a condução de veículos automotores que ele próprio confirmou ter ingerido o conteúdo de três latas de cerveja algumas horas antes da abordagem (fl. 10). A circunstância de haver se recusado aos exames efetivos de apuração da dosagem alcoólica o liberou da incursão no crime de trânsito respectivo, mas não o dispensou e não o dispensa da incursão na infração administrativa, tal como acertadamente foi lançada a autuação administrativa (noticiada à fl. 98).   
É de clareza solar que o réu naquela ocasião estava agindo de modo errado desde o momento em que recolheu a adolescente em seu automóvel (num local conhecido como ponto de programas sexuais), passando pela inicial evasão da abordagem, pela tentativa de dar uma “carteirada” nos policiais (pois evidentemente não exibiu a carteira profissional para os policiais por mero acidente, máxime porque o simples fato de a carteira cair no chão não permitiria aos policiais sequer tempo de lerem do que se tratava a ponto de conseguirem identificar que era a identificação de um engenheiro), pela obstrução do trabalho policial também ao se recusar aos exames efetivos de aferição da dosagem alcoólica. Ou seja, não há dúvidas de que o acusado agiu de modo extremamente impertinente, mas em vez de compreender que foi ele próprio quem causou toda a situação e se conscientizar de seus erros, preferiu tentar transferir a responsabilidade para terceiros atribuindo “repudiantes atitudes policiais” (fl. 98). A rigor, os policiais que participaram da abordagem foram até diligentes e evitaram maiores constrangimentos para o réu, pois já tendo ele inicialmente tentado fugir da abordagem, podia até mesmo ter sido conduzido algemado e no camburão até a delegacia, em vez de meramente acompanhar o veículo retido juntamente com o caminhão do guincho (fl. 86).
Quanto ao mérito, os elementos de convicção são suficientes a autorizar a conclusão de que o réu realmente ajustou com a adolescente um programa sexual pelo valor de trinta reais e que estavam em vias de iniciar o ato sexual quando da aproximação da polícia militar. Primeiro, porque a própria negativa do acusado é desprovida de credibilidade (como já visto). Segundo, em função de que um dos policiais militares confirmou em juízo tais fatos, os quais lhe foram relatados pela própria adolescente na ocasião da abordagem (fl. 67). Terceiro, porque a conselheira tutelar que presenciou as declarações da adolescente na fase policial também confirmou ter ela contado sobre o ajuste e encaminhamento para o programa sexual (fl. 68). Quarto, em razão de que as declarações da adolescente na fase policial são admissíveis como prova (exceção contida no art. 155 do CPP, visto ter se tornado irrepetível) e retratam com clareza e riqueza de detalhes a ordem dos acontecimentos (fl. 6).
Todavia, embora tenha o réu incorrido em crime em tese (o que bem autorizava a prisão em flagrante e a persecução criminal), o entendimento jurídico que adoto culmina na solução absolutória.
A uma, pelo próprio erro de tipo, porquanto não fosse viável conhecer com precisão a idade da adolescente, não sendo possível aferir pela aparência que tivesse menos de 18 anos de idade. Tanto é assim que dois policiais civis (pessoas acostumadas com ocorrências criminais e com o contato com as pessoas) testemunharam nesse sentido (fls. 71 e 72).
A duas, em razão de que, diversamente do contido na denúncia, a adolescente não era menor de 14 anos de idade ao tempo dos fatos (29.4.2010), eis que nascida em 1.2.1996 (fl. 8). Assim, a relação sexual com ela não teria o condão de acarretar crime mais grave (art. 217-A do CP) e apenas caso tivesse acontecido a conjunção carnal estaria caracterizada a conduta equiparada prevista no artigo 218-B, § 2º, inciso I, do Código Penal. Mas a acusação se limita à conduta prevista no caput do artigo 218-B do Código Penal e reputo que essa disposição se restringe às figuras do “rufião” ou do “cafetão” (aqueles que exploram e submetem adolescentes à prostituição), o que não se aplica ao cliente ocasional (como seria o acusado, segundo contou a adolescente à fl. 6). Nesse sentido, mutatis mutandis, manifestou o Superior Tribunal de Justiça que “o crime previsto no art. 244-A do ECA não abrange a figura do cliente ocasional, diante da ausência de ‘exploração sexual’ nos termos da definição legal” (STJ, REsp 884333/SC, rel. Min. Gilson Dipp, DJ 29.6.2007, p. 708).
Portanto, resulta necessária a absolvição nos moldes do artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.
3. Dispositivo:
Diante do exposto, e com fundamento no art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal, julgo improcedente a pretensão punitiva para o fim de ABSOLVER o acusado XXXX.
Sem custas, em razão da absolvição.
Em observância ao item 22, “d”, do Capítulo V das Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, e com a qualificação completa do sentenciado, comunique-se o desfecho da ação penal ao serviço distribuidor e ao Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpra-se.
De Jacupiranga para Registro, autodata.

AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

Nenhum comentário:

Postar um comentário