21 de dezembro de 2011

Releitura

RELEITURA


* Por Ayrton Vidolin Marques Júnior, Juiz no Estado de São Paulo

           
Dentre os crimes contra a vida, existe o previsto no artigo 121 do Código Penal, denominado homicídio. A conduta incriminada é dada na simples fórmula: “matar alguém”. Mas será mesmo simples essa fórmula?

Para a doutrina jurídica a fórmula tem sido exposta como simples. E como se parte de uma noção singela e previamente admitida como verdadeira, poucos a questionam.

Há doutrinas criminais que definem o termo “alguém” contido no preceito legal como sendo qualquer ser humano vivo. Outras especificam que “alguém” é indivíduo do sexo masculino ou feminino e integrante da espécie humana. Há também aqueles ainda mais específicos, segundo os quais “alguém” é a pessoa natural, filha biológica de uma mulher humana, após o início do trabalho de parto e desde que o sujeito ativo não seja a própria mãe em estado puerperal (essa especificidade tem por objetivo diferenciar o homicídio dos crimes de aborto e infanticídio). Igualmente para os crimes de aborto e infanticídio o sujeito passivo precisa ser fruto da concepção tendente a gerar um ser da espécie humana.

De fato, não há dúvidas de que a intenção original do legislador foi a de proteger a vida humana, tanto que atribuiu o nome jurídico de homicídio, em explícita menção a homem (gênero humano).

Todavia, nenhuma interpretação jurídica precisa ficar eternamente restrita, podendo ela evoluir com a sociedade. Nesse aspecto se insere a interpretação sociológica, que é a interpretação sob as lentes do homem contemporâneo, em decorrência do aprimoramento das ciências sociais. E ainda a novel interpretação holística, que tem por mote examinar a norma jurídica dentro do contexto multidisciplinar, a partir de elementos de outros ramos (como a história, a sociologia, as ciências), mas, principalmente, tendo por orientação as filosofias de cunho esotérico.

“Primeiro foi necessário civilizar o homem em relação ao próprio homem. Agora é necessário civilizar o homem em relação a natureza e aos animais.” (Victor Hugo)

E no presente artigo ouso trazer uma nova proposta. Sei que a nossa sociedade ainda não se encontra em estágio de civilização e amadurecimento suficiente a aplicá-la, mas é preciso que se comece a semear para que os frutos possam chegar.

Leonardo Da Vinci disse: “virá o dia em que a matança de um animal será considerada crime tanto quanto o assassinato de um homem”. Embasamento religioso, filosófico, científico e jurídico para tanto já existe.


Creio não existir religião que repute correto ceifar qualquer vida criada pelo princípio maior (independentemente do nome que a Ele se atribua). Toda obra criada carrega consigo a centelha do criador. Não é possível existir criação completamente dissociada de sua fonte criadora e isso é constatável igualmente nas criações do plano material.


“Não me interessa nenhuma religião cujos princípios não melhoram nem tomam em consideração as condições dos animais.” (Abraham Lincoln)

Mesmo nos Dez Mandamentos a prescrição foi “não matarás”. “Não matarás” significando claramente o conteúdo proibitivo de matar alguma criação viva do princípio maior. Isso é de fácil compreensão também a partir do exame atento do plano material, pois ninguém deseja ou fica contente com a destruição daquilo que criou. Foi o homem que, não compreendendo adequadamente o conceito, acabou por especificar que são apenas outros homens que não se pode matar. Mas essa especificação em nenhum momento foi feita por Aquele de quem emanou.

“Não permitas que ninguém negligencie o peso de sua responsabilidade. Enquanto tantos animais continuam a ser maltratados, enquanto o lamento dos animais sedentos nos vagões de carga não sejam emudecidos, enquanto prevalecer tanta brutalidade em nossos matadouros, todos seremos culpados. Tudo o que tem vida, tem valor como um ser vivo, como uma manifestação do mistério da vida.” (Albert Schweitzer)

Até porque os homens e os animais são basicamente iguais, operando com base nos instintos de alimentação (comer), repouso (dormir), sexualidade (ter vida sexual) e defesa (defender-se de ameaças). O único diferencial entre os homens e os animais é que os homens são dotados de maior discernimento para a busca da evolução espiritual. Porém, quantos não são os homens que relegam essa busca espiritual e se limitam a viver como os animais em geral? E nem por isso é autorizado que se os matem.  


“Olhe no fundo dos olhos de um animal e, por um momento, troque de lugar com ele. A vida dele se tornará tão preciosa quanto a sua e você se tornará tão vulnerável quanto ele. Agora sorria, se você acredita que todos os animais merecem nosso respeito e nossa proteção, pois em determinado ponto eles são nós e nós somos eles.” (Philip Ochoa)

Todos os seres viventes são filhos do Pai Supremo, mesmo sob diferentes corpos e formas. Em um paralelo com nossa experiência terrena, pode ser que um pai tenha muitos filhos e que alguns deles sejam inteligentes, enquanto que outros não sejam tão inteligentes, mas se o filho mais inteligente resolve matar o menos inteligente, certamente que isso não terá a aprovação do pai. Quem não pode criar uma vida (valendo lembrar que criar é diferente de gerar uma nova vida através de si) também não tem o direito de matar outra entidade viva. O princípio da moral humana tem início pelo respeito a toda entidade viva.

“Um homem só é nobre quando consegue sentir piedade por todas as criaturas.” (Buda)

Sob o prisma filosófico, o que diferencia os homens dos animais não é a capacidade de pensar (pois pensar e sentir não são exclusividade dos humanos). É a capacidade de racionalizar questionamentos para a vida, tais como: Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Existe uma vida eterna? Por que fui colocado nesta condição? Existe algum remédio? Como posso viver feliz e pacificamente? Qual é o sentido da vida?    
O Pensador


E aqui novamente se constata a existência de inúmeras pessoas que não utilizam essa capacidade de racionalização, equiparando-se ao modo de vida animal, mas nem por isso elas podem ter as vidas interrompidas. 

Ocorre que a capacidade de racionalizar não anula a realidade e os sentimentos. Também os animais experimentam o nascimento, a doença, a velhice e a morte. Também eles possuem diferentes graus de sensações, de inteligência e de sentimentos.

“Haverá um dia em que o homem conhecerá o íntimo dos animais. Neste dia, um crime contra um animal será considerado um crime contra a própria humanidade.” (Leonardo Da Vinci)

Racionalizar não se constitui em justificativa para que se tenha autorização para tirar a vida daqueles que não racionalizam. Muito pelo contrário, quanto maior a capacidade de racionalização, maior é a responsabilidade com o restante dos seres vivos. Já ensinava o personagem do tio do homem aranha que grandes poderes trazem consigo grandes responsabilidades. A ética precisa compreender que ela se aplica não em relação exclusiva aos homens, mas a todos os seres vivos.


A ciência já demonstrou que os homens não são diferentes dos animais. O homem, aliás, é uma forma evoluída de animal. Sabe-se, por exemplo, que o homem faz parte da superfamília de primatas chamada Hominoidea, e que os homens e os chimpanzés têm noventa e oito por cento de genética em comum. Sob as lentes da genética, matar um primata é praticamente igual a matar um ser humano.



“A compaixão para com os animais é das mais nobres virtudes da natureza humana.” (Charles Darwin)

Durante o desenvolvimento embrionário o embrião humano passa por inúmeras fases, em muitas das quais apresenta elevada semelhança com os outros animais (anfíbios, aves, répteis e outros mamíferos). Somente com o passar do tempo e do desenvolvimento é que começam a surgir características individualizantes, quando então reduzem as semelhanças mórficas. E se assim o é, não há diferença científica entre se permitir a morte de animais em geral (anfíbios, aves, répteis e outros mamíferos) com a morte de fetos humanos (como ocorre no aborto).




Mesmo depois do nascimento, uma criança demora um considerável tempo para conseguir assimilar o mundo, falar, andar e expressar seus sentimentos, enquanto que inúmeros animais conseguem atingir esse estágio de modo bem mais rápido, como os gatos e os cachorros. Assim, pelo critério do conhecimento e da interação com o mundo, os animais merecem tanta proteção quanto as crianças e os bebês. As circunstâncias de não conseguirem falar para pedir socorro e de não conseguirem se defender dos homens mais adultos não são motivos suficientes a permitir que sejam submetidos a toda sorte de torturas e morte. Ao revés, justamente por serem mais frágeis e indefesos é que precisam que os homens mais racionais desenvolvam métodos que lhes assegurem maior proteção e possibilidade de desenvolvimento pleno e sadio.

“Jamais creia que os animais sofrem menos do que os humanos. A dor é a mesma para eles e para nós. Talvez pior, pois eles não podem ajudar a si mesmos.” (Louis J. Camuti)

É sempre válido lembrar que num passado não muito remoto quem não era cidadão ateniense não tinha quaisquer direitos e podia ser objeto de apropriação ou de moléstia. O mesmo ocorreu ao longo do desenvolvimento da sociedade com mulheres, escravos e deficientes. E hoje em dia se sabe o quão desumano é submeter quaisquer deles a tratamento cruel e degradante. Inclusive, não apenas se repudia qualquer forma de discriminação, como são implementadas ações afirmativas voltadas justamente a esse público.

“Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos que jamais poderiam ter-lhes sido negados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é razão para que um ser humano seja irremediavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. É possível que um dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que um bebê de um dia, de uma semana, ou até mesmo de um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria tal fato? A questão não é ‘Eles são capazes de raciocinar?’, nem ‘São capazes de falar?’, mas, sim, ‘Eles são capazes de sofrer?’” (Jeremy Bentham).

Sequer juridicamente se sustenta a diferenciação entre a morte de um animal e a morte de um ser humano. A legislação, emprestando noções científicas, acabou por gerar previsão de cuja inteligência se extrai que para fins jurídicos a vida tem início e fim com o início e fim da atividade cerebral. Isso decorre do artigo 3º da Lei 9.434/97, dispositivo esse que autoriza a retirada de órgãos para fins de transplante com o diagnóstico de morte encefálica (cessação das atividades cerebrais, com parada total e irreversível das funções e sem atividade bioelétrica-encefálica).

“Não há diferenças fundamentais entre o homem e os animais nas suas faculdades mentais. (…) os animais, como os homens, demonstram sentir prazer, dor, felicidade e sofrimento.” (Charles Darwin)

Curiosa a aplicação jurídica na quadra atual, não!? Um homem em estado vegetativo, desde que tenha alguma atividade elétrica no cérebro, não pode ter sua vida retirada sob pena de incursão em grave crime. Já um animal, mesmo no auge de todas as suas atividades cerebrais, caso tenha sua vida retirada ou sua integridade violada apenas sujeita o ofensor à incursão em uma infração de menor potencial ofensivo.

Paradoxal.  

Se a definição de vida surge para o Direito com a atividade encefálica, todas as entidades vivas (com atividade cerebral) precisam receber a mesmíssima proteção.

Pura aplicação da igualdade. Não há que se diferenciar onde não existe diferença. Caso houvesse de se impor diferenciação de proteção de acordo com a intensidade da atividade cerebral, um homem em estado vegetativo deveria ter menos proteção do que um animal saudável. E não é o que ocorre.

“A vida é valor absoluto. Não existe vida menor ou maior, inferior ou superior. Engana-se quem mata ou subjuga um animal por julgá-lo um ser inferior. Diante da consciência que abriga a essência da vida, o crime é o mesmo.” (Olympia Salete)

Volto agora à noção de “alguém” que foi introduzida no início deste ensaio. Os crimes que se encontram no Código Penal inseridos no capítulo dos crimes contra a vida são relacionados à vida, não à vida específica do homem. Até o foram originalmente, tanto que se atribuiu ao crime previsto no artigo 121 do Código Penal o nome jurídico de homicídio. Mas atualmente essa limitação não mais se sustenta, pois, como visto, existe arcabouço religioso, filosófico, científico e até mesmo jurídico para se atribuir a dimensão de que todas as vidas são igualmente valiosas.

Alguns penalistas a esta altura devem estar pensando que é um absurdo interpretar a norma de um jeito a prejudicar o criminoso. Todavia, não se está a colocar palavras onde elas não existem e nem de retirar palavras que na norma existam. Apenas se está reconhecendo que “alguém” tem o significado de todas as entidades vivas. Ninguém está deturpando a noção de “alguém”. O que se está é reconhecendo que “alguém” na ótica contemporânea possui uma roupagem diferente do que no passado.      
  
Outros devem estar se questionando se todas as mortes de animais praticadas por humanos (especialmente os abates para fins de alimentação) estariam a configurar o crime previsto no artigo 121 do Código Penal. A resposta é negativa.

É claro que melhor seria não se comer carne e que os humanos são biologicamente estruturados para uma dieta preferencialmente à base de leite, legumes, verduras, frutas e cereais. Mas comer ou não comer carne é uma opção individual, que cabe a cada um. E como a enorme maioria da população ainda não conseguiu deixar de comer carne, o abate de animais para alimentação consiste em conduta socialmente aceitável, o que exclui o caráter criminoso do fato (embora muitas culturas já se preocupem com que somente animais que tenham morrido de causas naturais possam ser comidos e outras se ocupem de assegurar que os animais de corte tenham a morte de uma forma menos traumática e menos cruel).

“Se os matadouros tivessem paredes de vidro, todos seriam vegetarianos. Nós nos sentimos melhores com nós mesmos e melhores com os animais, sabendo que nós não estamos contribuindo para o sofrimento deles.” (Paul McCartney)

Também as mortes de animais decorrentes de medo, de questões sanitárias ou de acidente não configuram ilícito criminal, pois nesses casos estão presentes a legítima defesa (pessoal ou de outrem, ainda que imaginária), a utilidade social e a inevitabilidade para o homem médio.

Essa implicação criminal do artigo 121 do Código Penal para quem mata ou tenta matar animais se volta especialmente para aqueles casos em que o criminoso assim age com a vontade livre e consciente de ceifar uma vida pelo prazer da morte em si mesma. Pelo “prazer” em ver uma vida se esvair. Tais casos geralmente estão acompanhados de contornos de sadismo, em que os animais são submetidos a demasiada crueldade (como um recente caso no qual um homem enterrou um cachorro vivo). Para tais situações, não tenho dúvidas de que o dolo de ceifar uma vida merece encontrar a tipicidade já prevista pelo artigo 121 do Código Penal.

“A compaixão pelos animais está intimamente ligada a bondade de caráter, e pode ser seguramente afirmado que quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem.” (Arthur Schopenhauer)

Matar um animal é tão ou mais reprovável quanto matar um homem. Todas as entidades viventes são dignas de idêntico respeito e proteção.

“Enquanto o homem continuar a ser destruidor impiedoso dos seres animados dos planos inferiores, não conhecerá a saúde nem a paz. Enquanto os homens massacrarem os animais, eles se matarão uns aos outros. Aquele que semeia a morte e o sofrimento não pode colher a alegria e o amor.” (Pitágoras)


*É autorizada a reprodução total ou parcial deste artigo, desde que citada a autoria.

2 comentários:

  1. Muito bom o seu texto. Gostei da tese.

    Abraço com o desejo de um ótimo Natal e um novo ano iluminado.

    TFA
    Elias.

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  2. Adorei o texto!
    Parabéns!
    Bjo
    Maria Emilia

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