6 de agosto de 2011

Criminoso habitual e princípio da insignificância


3ª Vara Judicial da Comarca de Registro
Autos nº 101/2010
Autor:                      Ministério Público do Estado de São Paulo
Denunciado:            XXXX

(...)

Diversamente do capitulado pela acusação (art. 383 do CPP), o concurso de crimes aplicável é o material. Isso porque o exame da vida pregressa do acusado demonstra ser ele duplamente reincidente (autos ns. 309/2005 e 116/2002), ostentar outra condenação recente ainda sem trânsito em julgado (autos n. 627/2008), além de contar com extensa lista de apontamentos criminais. Tais elementos demonstram que o denunciado acabou por tornar a senda criminosa em seu meio de vida (habitualidade na prática delitiva). E, como se sabe, “é impossível o reconhecimento do crime continuado se o contexto dos autos aponta para a habitualidade na prática delitiva” (STJ, HC 142131/MA, rel. Min. Og Fernandes, DJe 21.6.2010).
Rejeito a tese defensiva.
A semente do princípio da insignificância foi plantada pelos romanos, os quais enunciaram o postulado de minimis non curat praetor, que pode ser considerado como “o magistrado não deve se ocupar com questões insignificantes”.
No Brasil, muito tempo antes de o princípio passar a ser propalado como um princípio, Nelson Hungria já alcançava inteligência semelhante, alertando que “somente não se podem considerar objeto de furto as coisas de valor juridicamente irrelevante (ex: um alfinete, um palito, uma flor vulgar)” (Comentários ao Código Penal. 2. ed., Forense, Rio de Janeiro, 1958, p. 23, v. VII).
Como princípio aplicável ao direito criminal foi inicialmente proposto por Claus Roxin, o qual indicava ser necessária a perquirição do desvalor do dano, da ação e da culpabilidade, pois há casos em que mesmo diante do valor insignificante do bem, há outras circunstâncias que não podem ser desconsideradas para a formação do juízo de reprovação (ação e culpabilidade). Dessa forma, de acordo com a estrutura jurídica do princípio, somente se afasta o caráter criminoso se: (a) houver ínfima afetação do bem jurídico; (b) o conteúdo do injusto for tão pequeno que não subsista utilidade a qualquer das finalidades da pena; e (c) a mínima pena aplicada se mostrar desproporcional à significação social do fato e às condições pessoais do agente.   
Cuida-se de princípio inerente ao funcionalismo teleológico, no qual se entende que a missão do direito penal é assegurar bens jurídicos indispensáveis.
Ocorre que o próprio berço do funcionalismo teleológico (Alemanha) está em transição para o funcionalismo sistêmico, para o qual a função do direito penal passa a ser a de resguardar a norma (o sistema jurídico), acarretando que toda violação à norma é punível, por desafiar a higidez e a estabilidade do sistema, vulnerando o pacto social. Trata-se de teoria lastreada nos estudos sociológicos de Niklas Luhmann e que tem a compreensão de que são as expectativas e as expectativas de expectativas que orientam o agir e o interagir dos homens em sociedade, reduzindo a complexidade da convivência, tornando a vida mais previsível e menos insegura. Entende-se que as expectativas normativas não podem ser sempre decepcionadas, pois acabam por perder credibilidade. Por conseguinte, reputa-se ser necessário o processamento das decepções, de forma que a decepção gere alguma reação que reafirme a validade da norma, sendo que uma dessas reações é a sanção penal. Essa corrente se afigura atenta aos efeitos da pena especialmente sobre a população respeitadora do direito, eis que ela vê reafirmada e assegurada sua confiança na vigência fática das normas, com a consequente preservação de bens jurídicos. Por conseguinte, tal corrente repele o princípio da insignificância.
Paralelamente, nos Estados Unidos da América a partir de 1982 foram realizados diversos estudos e experimentos sociais que de certo modo complementam o funcionalismo sistêmico. A base é conhecida como a teoria das janelas quebradas e os resultados demonstraram que a impunidade de crimes ínfimos e pequenos estimula o crescimento da violência e a ocorrência de crimes graves. Excelente conclusão a respeito dela e sua relação com o afastamento do princípio da insignificância se encontra em precedente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no qual o magistrado Euvaldo Chaib arrematou que: “não é só a pobreza o fator conducente à criminalidade, ou seja, à prática de infrações penais, mas também a impunidade – sua crença – quando se está diante de crimes de pequena gravidade. A este teor, com a devida vênia, há que se repudiar a recorrente aplicação do princípio da insignificância para inúmeros fatos típicos porque, desta forma, o Judiciário estimula a reiteração criminosa. Destarte, ainda que o delito tenha gravidade não exacerbada, há que se punir, sob pena de estimular crimes mais graves” (TJSP, Apelação n. 990.10.339682-0, rel. Euvaldo Chaib, excerto do voto, j. 18.1.2011).   
O Brasil, todavia e majoritariamente, segue na contramão dos países reconhecidamente mais firmes na preservação da sociedade e dos cidadãos. Não bastasse ter passado a aplicar o princípio da insignificância de modo imoderado, passou a desvirtuar também o conceito inicial de Claus Roxin. Houve afastamento da real noção de insignificância (ninharia, valor irrelevante), estendendo o conceito para valores que já apresentam certa significância (ainda que pequena). Mais: passou-se a desconsiderar o juízo de reproche de acordo com as condições pessoais do agente para se adotar um critério exclusivamente objetivo, de acordo com o valor do objeto em proporção ao patrimônio da parte lesada.
Com o devido respeito, tenho que isso se afigura fruto de interpretações equivocadas.
O primeiro, por agir de modo mais severo com a vítima pelo simples fato de possuir melhores condições econômicas, incorporando ao direito criminal uma sinistra luta de classes. Aliás, levando ao extremo, uma pessoa que furtasse uma única ferrari da própria empresa Ferrari poderia ser beneficiada com a insignificância, pois uma ferrari furtada não seria suficiente a lesionar considerável e proporcionalmente o patrimônio da empresa.  
O segundo por se equivocar sobre a noção de direito penal de autor. Sob o pretexto de não incorrer em direito penal de autor se está paulatinamente excluindo tudo o que é subjetivo (ligado às condições pessoais do agente) da análise do juízo de reprovação da conduta. Ocorre que direito penal de autor é aquele em que a punição recai sobre a pessoa exclusivamente em razão da sua periculosidade biológica ou da sua maneira de ser (sem que um ato lesivo à sociedade seja exteriorizado). Diferente é o direito penal de ato, em que a pessoa é punida por ter praticado uma conduta humana penalmente prevista como reprovável. No direito penal de ato (ou de fato) em que a sanção recai sobre o que a pessoa já fez, não há obstáculo em se considerar as circunstâncias subjetivas para aferição do juízo de reproche ou para a mensuração da reprimenda penal. Pelo contrário, é até mais atenta à isonomia, conferindo tratamento diferente para pessoas diferentes (ou por acaso há alguma dúvida de que, por exemplo, uma pessoa que conte com diversas condenações anteriores seja merecedora de punição mais severa do que aquela que é primária e que praticou apenas um fato isolado em sua vida).
Pois bem. Pessoalmente, creio que a conjugação do funcionalismo sistêmico com a teoria das janelas quebradas, é consentânea com a realidade e prestigia a vida em sociedade, centrando-se especialmente na pessoa cumpridora de seus deveres e não naquela violadora do ordenamento jurídico.
Inclusive, elevando-se ao absurdo a concepção majoritariamente adotada no Brasil, viável seria que se expedissem desde logo salvo-condutos para que todas as pessoas pudessem realizar pequenas subtrações, o que, logicamente, ofende o pacto social, tornando vulnerado o princípio da confiança (Vertrauensgrundsatz), que tem por mote a expectativa que cada pessoa tem de que a outra irá agir de acordo com a conduta prevista pelas convenções e regras sociais.  
Laura Gondro Vidolin, com a sabedoria dos antigos, ensina que “quem furta um tostão, furta um milhão”. Vale dizer: quem é capaz de praticar um pequeno furto é igualmente capaz de cometer um grande furto. De fato, o preceito ético violado é exatamente o mesmo em qualquer uma das hipóteses e a impunidade tem o condão de fomentar a ocorrência de outros crimes, frustrando as expectativas sociais e trazendo instabilidade à vida em sociedade. Daí que entendo não ter aplicação do princípio da insignificância.
No presente caso, aliás, sob qualquer ótica se tem por inaplicável.
Sob o viés romano e de Nelson Hungria, as coisas furtadas tinham valor (ainda que pequeno), não se tratando de bens ínfimos como um alfinete, um palito ou uma flor vulgar.
Pelo prisma de Claus Roxin a insignificância resulta afastada a partir do exame do desvalor da ação e do desvalor da culpabilidade, pois ao se considerar as condições subjetivas do agente (duplamente reincidente e com elementos de que se trata de criminoso habitual) resulta evidente que a punição penal é necessária e útil.
Até pela ótica mais libertária não tem incidência. É que cabe ao Estado-juiz examinar o caso concreto à luz das peculiaridades locais para então se determinar a lesividade mínima ou não do fato. E nessa tarefa, o magistrado de primeiro grau de jurisdição mostra-se abalizado, pois é quem está no contato direto com as partes e com a comunidade local, tendo consciência das peculiaridades daquele determinado lugar. Por isso, não é possível generalização no sentido de que os crimes em tela nunca apresentam gravidade ou repercussão social. Essa gravidade e repercussão podem estar presentes no caso concreto, como ocorre na espécie. Em uma grande capital os fatos seriam possivelmente até considerados irrelevantes. Todavia, ao se transportar o palco delitivo especificamente para esta região do Estado de São Paulo – o Vale do Ribeira (também conhecido como “Vale da Fome”) –, resta claro que os dados concretos revelam elevada gravidade. Com efeito, nesta região se faz presente situação de extremada carência econômica. Por conta disso, os crimes patrimoniais causam à comunidade local um considerável abalo, imprimindo gravidade aos fatos. Apresentam, portanto, expressiva ofensividade para a ordem pública.
Isso tudo não bastasse, sendo o acusado duplamente reincidente, há obstáculo até mesmo ao reconhecimento do privilégio (CP, art. 155, § 2º). Assim, por corolário lógico, se nem mesmo o privilégio (que é mais simples do que a insignificância) pode ser reconhecido, com muito menos razão deve ser aplicado o princípio da insignificância.
Destarte, as condutas humanas praticadas pelo acusado se amoldam ao crime previsto no artigo 155, caput, do Código Penal, por três vezes, em concurso material de crimes (artigo 69 do CP), sendo dois deles consumados e um tentado (art. 14, inciso II, do CP).
(...)

2 comentários:

  1. Muitos princípios estão sendo anulados, com desenvolturas deturpadas no Direito Penal.

    A Teoria das Janelas Quebradas é uma leitura interessante. Principalmente àqueles que anulam a sociedade em prol a teorias delicadas, como o pseudogarantismo atual.

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  2. Esse é o ponto Michele. Atualmente o pessoal confunde "garantias" com excesso e com abuso de direito.

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