5 de agosto de 2011

Franz Kafka



3ª Vara Judicial da Comarca de Registro
Autos nº 757/2009
Autor:                       XXXX
Ré:                            XMED

S  E  N  T  E  N  Ç  A
Vistos, etc.
1. Relatório:
XXXX ajuizou pedidos de anulação de ato administrativo e de reparação civil por danos morais (no montante de dez mil reais) contra a XMED. Pretendendo anular a decisão que o eliminou da cooperativa (e da consequente exclusão do plano de saúde coletivo), sustentou que o procedimento que culminou com a sanção violou o contraditório e a ampla defesa, impugnando, também, os fatos que foram considerados comprovados pelo mérito administrativo. Aduziu que os danos morais decorrem de publicação realizada em jornal regional, além dos transtornos inerentes à exclusão da cooperativa e do plano de saúde coletivo (fls. 2-14 e emenda de fl. 48).
Indeferida a antecipação dos efeitos da tutela (fl. 46), houve a citação da ré (fl. 54-verso).
A defesa, deduzida na forma de contestação, asseverou não haver irregularidade ou ilegalidade no procedimento de eliminação; discorreu sobre o acerto do mérito administrativo; afirmou que a homologação da eliminação junto ao Conselho Regional de Medicina iria ocorrer dentro do prazo regulamentar; e relatou que a exclusão do plano de saúde somente ocorrerá em 31.12.2010, consoante acordo celebrado em outro feito (fls. 55-75).
Houve réplica (fls. 266-271).
É o relatório. Decido.
2. Fundamentação:
O caso comporta julgamento antecipado, pois os documentos encartados com a defesa bem permitem a compreensão e solução da controvérsia, não havendo necessidade de realização de outras provas em audiência (CPC, art. 330, inciso I). Inclusive, ao julgar antecipadamente, utilizo-me do poder de velar pela rápida solução do litígio, impedindo "que as partes exerçam a atividade probatória inutilmente ou com intenções protelatórias" (Vicente Greco. Direito Processual Civil Brasileiro. 14. ed., Saraiva, 1999, v. 1, p. 228). Com efeito, "sendo o juízo o destinatário da prova, somente a ele cumpre aferir sobre a necessidade ou não de sua realização" (Theotonio Negrão. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, nota "1b" ao artigo 130).
É cediço que “no direito cooperativo, assentou a doutrina que os estatutos contêm as normas fundamentais sobre a organização, a atividade dos órgãos e os direitos e deveres dos associados frente a associação. São disposições que valem para todos os partícipes (cooperados) por isso que de natureza geral e abstrata, tal como a constituição reguladora da vida do estado rege o comportamento das sociedades personificadas. Tais normas não assumem uma característica contratual, mas regulamentar ou institucional” (STJ, REsp 126391/SP, rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 27.9.1999, p. 94). Isso porque as cooperativas “são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias” (art. 4º da Lei n. 5.764/1971).
Dado o caráter institucional das cooperativas, entendo não caber ao Poder Judiciário a incursão no mérito administrativo, em analogia ao que ocorre com a administração pública. Mutatis mutandis:
“No que diz respeito ao controle jurisdicional do processo administrativo disciplinar, a jurisprudência do Superior Tribunal é firme no sentido de que compete ao Poder Judiciário apreciar, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, a regularidade do procedimento sem, contudo, adentrar o mérito administrativo” (STJ, MS 10906/DF, rel. Min. Nilson Naves, DJe 1.10.2008). No mesmo sentido: RMS 13713/PR, rel. Min. Og Fernandes, DJe 31.5.2010.
Porém, também em função do caráter institucional, cabe ao Poder Judiciário o controle da observância ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal. E nem poderia ser diferente, pois tal modalidade de controle é intrínseca ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, consagrado pela Constituição da República Federativa do Brasil (art. 5º, inciso XXXV), além de se constituir em garantia expressamente assegurada (“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” – CRFB, art. 5º, inciso LV).
Nesse passo, pelo caráter institucional as cooperativas regem-se não apenas pela Lei n. 5.764/1971, como também por seus estatutos e demais regulamentos administrativos, a exemplo do regimento interno, a eles devendo obediência. Além da obviedade dessa constatação, a própria ré reconhece a necessidade de observância ao regimento interno ao invocar dispositivos dele em sua peça defensiva.
Por isso que para a eliminação de associado não basta o atendimento ao disposto nos artigos 33 (lavratura do termo de eliminação) e 34 (comunicação da eliminação com possibilidade de recurso à primeira assembleia geral) da Lei n. 5.764/1971, devendo a cooperativa cumprir também o quanto prescrito em seus estatutos e regimentos.
E, especificamente no caso, o regimento interno prevê o seguinte procedimento para eliminação de cooperado (fls. 119-122):
(I) notificação pela Diretoria Executiva ao denunciado para se pronunciar sobre os fatos e apresentar defesa em quinze dias (artigo 58);
(II) instrução com as provas julgadas pertinentes pela Diretoria ou apresentadas pelo interessado (artigo 60);
(III) encerramento da instrução, com encaminhamento de pedido de parecer ao Conselho Técnico com um relatório sobre a matéria de fato e de direito (artigo 61);
(IV) parecer do Conselho Técnico, assinado por três membros (artigo 62);
(V) retorno à Diretoria Executiva, com o Presidente designando um dos Conselheiros de Administração para funcionar como relator (artigo 63), sendo vedado que quaisquer dos integrantes da Diretoria Executiva sejam relatores (§ 2º);
(VI) elaboração do relatório pelo relator (artigo 64);
(VII) com o relatório, o Presidente pauta o processo, comunicando a data ao relator (artigo 65);
(VIII) o Conselho de Administração, examinando o processo, delibera sobre a matéria, eliminando ou não o cooperado denunciado (artigo 66);
(IX) em caso de deliberação pela eliminação, notificam-se os interessados, cabendo recurso à Assembleia Geral (artigo 69);
(X) sendo interposto recurso, ele é limitado à matéria de direito, ficando vedada tanto ao recorrente como à Diretoria a produção de novas provas (artigo 70);
(XI) recebido o recurso, o Presidente designa um membro do Conselho de Administração para examinar o recurso e funcionar como relator (artigo 71);
(XII) o recurso é apreciado pela Assembleia Geral em decisão irrecorrível no plano administrativo (artigo 73);
(XIII) encaminha-se o termo de eliminação mediante notificação registrada ao interessado (artigo 68, § 1º).    
Vale dizer, o procedimento de eliminação deveria seguir e atender a todas essas etapas. Entretanto, não foi o que ocorreu.
Suprimindo-se toda a fase prévia de defesa e instrução, a eliminação teve início diretamente com a votação pelo Conselho de Administração em 30.6.2008, quando se constou:
“Item Dr. XXXX. Dr. D esclarece que o cooperado teve o último atendimento médico de usuários da Xmed, na área de abrangência da Xmed, em 2004 e desde então deixou de exercer a medicina na região, como é de conhecimento público; Dra. K esclarece que nos termos do artigo 11, do Estatuto da Xmed, o cooperado que deixar de exercer na área de ação da Cooperativa, a atividade que lhe facultou cooperar-se, deve ser eliminado por decisão do Conselho de Administração. Dra. K salienta que, caso o cooperado seja eliminado, deverá ser notificado da decisão e poderá interpor recurso suspensivo para a Assembleia Geral seguinte. Dr. D então coloca em votação a eliminação do cooperado Dr. XXXX, com fundamento no artigo 11, alínea ‘b’, do Estatuto da Xmed e artigo 33, da lei n. 5.764/71. Aprovado por unanimidade. Dr. D determina que seja lavrado termo de eliminação do cooperado no Livro de Matrículas da cooperativa e encaminhado cópia autenticada do termo ao cooperado. Aprovado por unanimidade” (fl. 129).
Como se infere, não houve notificação para defesa em quinze dias (artigo 58); instrução com as provas julgadas pertinentes pela Diretoria ou apresentadas pelo interessado (artigo 60); encerramento da instrução, com encaminhamento de pedido de parecer ao Conselho Técnico com um relatório sobre a matéria de fato e de direito (artigo 61); parecer do Conselho Técnico, assinado por três membros (artigo 62); designação de relator pelo Presidente (artigo 63); e elaboração do relatório pelo relator (artigo 64).
Somente o que houve foi a votação pelo Conselho de Administração e a realização de um “relatório inicial” pelo Presidente da Xmed. Desse relatório inicial, além de sequer ser possível a identificação da data em que elaborado (fls. 142-143), não permitindo definir se foi anterior ou posterior à votação, é certo que foi realizado pelo Presidente, em violação ao artigo 63, § 2º, do Regimento Interno, o qual veda que quaisquer dos integrantes da Diretoria Executiva figurem como relatores.
Essa supressão de toda a fase inicial consiste em clara ofensa ao devido processo legal (na espécie, o procedimento previsto pelo Regimento Interno da cooperativa), sendo que ao tolher a possibilidade de defesa e de instrução probatória culminou em atentar contra o contraditório e a ampla defesa. Desse modo, inafastável a nulidade do procedimento de eliminação que foi levado a efeito, máxime porque diante do ordenamento jurídico pátrio não mais se admite a verdade sabida ou em termo de declarações para chancelar sanções administrativas (a esse respeito: TJSP, Apelação 994070694481, rel. Paulo Dimas Mascaretti, j. 14.4.2010).    
A situação remete à lembrança de Joseph K., o personagem retratado na obra “O Processo”, de Franz Kafka, que é processado sem saber qual delito cometeu, e desesperadamente procura uma resposta que nunca encontra.
E não foi só. Após a decisão pelo Conselho de Administração o Regimento Interno veda a produção de novas provas, quer pelo recorrente, quer pela Diretoria (artigo 70). Porém, violando a disposição regimental, depois da decisão (30.6.2008) a cooperativa passou a diligenciar a realização de “provas” de seu exclusivo interesse. Nesse passo, em 6.8.2008 imprimiu-se documento eletrônico produzido em 8.7.2008 (fl. 163); em 28.10.2008 imprimiu-se documento eletrônico produzido em 27.10.2008 (fl. 166); em 19.3.2009 realizou-se a diligência noticiada à fl. 172 e em que foi feita conferência de endereço em consultório. Todos esses elementos de prova extemporaneamente produzidos foram utilizados pelo relator do recurso, pois expressamente citados em seu relatório (mais precisamente, às fls. 174 e 175).  
Ou seja, não bastasse a violação do devido processo legal na primeira fase do procedimento, também na fase recursal houve ofensa.  
Destarte, o procedimento de eliminação, tal como levado a efeito, afrontou ao disposto no art. 5º, inciso LV, da Constituição da República Federativa do Brasil, pois foi realizado com descumprimento aos artigos 58, 60, 61, 62, 63, 64 e 70 do Regimento Interno, não apenas suprimindo a fase prévia de defesa e instrução, como realizando provas em momento que se afigurava procedimentalmente inoportuno e proibido.
Já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
“Aplicação da pena de eliminação do quadro social dependia de procedimento em que fossem observados o devido processo legal, contraditório e ampla defesa – Anulação do ato de eliminação sumária, sem possibilidade de defesa” (TJSP, Apelação 99404039009-8, rel. Paulo Eduardo Razuk, j. 9.3.2010)
E se o procedimento padece de nulidade, também a eliminação decidida em seu bojo é inválida. Por consequência, o autor persiste com a qualidade de cooperado, não podendo também ser excluído do plano de saúde coletivo. Aqui, vale observar que se afigura irrelevante o acordo celebrado em outro juízo quanto ao plano de saúde, pois lá se partia da premissa de que havia eliminação e estaria ocorrendo imposição da mudança de plano. Assim, por corolário lógico, o acordo lá celebrado somente teria utilidade em caso de improcedência do pedido declaratório contido nestes autos, pois aí estaria confirmada a eliminação. Mas sem eliminação, persiste a qualidade de cooperado e, portanto, falece o principal substrato fático que dava amparo àquele acordo, persistindo o direito em permanecer no plano de saúde coletivo e relativizando-se a coisa julgada lá formada.
Passo ao exame dos danos morais.
Caso o procedimento tivesse sido regular não haveria quaisquer problemas em se cumprir o Regimento Interno, publicando-se em jornal que na ordem do dia seria votado o recurso sobre a eliminação do cooperado. Seria, nessa hipótese, exercício regular de direito.
Porém, como o procedimento foi permeado de irregularidades, já havia nulidade desde a primeira decisão do Conselho de Administração, de forma que a publicação no jornal perdeu o status de exercício regular de direito, criando situação publicamente aviltante ao autor. Ainda, a cooperativa submeteu o autor a draconiano procedimento, tolhendo suas garantias constitucionais e regimentais. Isso não bastasse, causou ao autor o temor de ver excluído a si e a seus dependentes do plano de saúde coletivo, que obviamente se afigura financeiramente mais vantajoso do que os planos de saúde individual ou familiar. Esse somatório de fatores traduz calvário hábil a atingir a dignidade, tornando presente a ocorrência de danos morais.
Desse modo, bem como considerando que a fixação deve ser suficiente a recompensar o lesado (sem ser irrisória e, ao mesmo tempo, sem se constituir em causa de enriquecimento indevido), bem como sopesando no caso as condições econômicas da responsável (renomada cooperativa de médicos) e do autor (médico), a intensidade da ofensa (que teve início em 30.6.2008 com a decisão de eliminação pelo Conselho de Administração e que se estendeu no tempo) e a suficiência para coibir a reiteração de condutas semelhantes, reputo coerente a mensuração do valor para reparação dos danos morais na quantia de R$ 10.000,00 (dez mil reais), tal como postulado. 
Aliás, em caso semelhante decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
“COOPERATIVA – Ato de exclusão de médico cooperado – Eliminação do quadro social de agremiação depende da instauração de processo administrativo, com ciência ao associado do fato que lhe é imputado e a concessão de prazo para a defesa – (...) Dano moral caracterizado – Exclusão de maneira pública, por injusto motivo, submeteu os autores a uma situação vexatória – Verba indenizatória fixada em vinte salários mínimos mostra-se consentânea com o dano causado e as peculiaridades do caso concreto” (TJSP, Apelação 99407033776, rel. Paulo Eduardo Razuk, j. 11.5.2010)
3. Dispositivo:
Diante do exposto, julgo procedente a pretensão inicial, extinguindo o feito com resolução do mérito (CPC, art. 269, inciso I), para os efeitos de:
(a) DECLARAR a nulidade da eliminação do autor do quadro de cooperados da XMED, de modo que reconheço ao autor a manutenção da qualidade de cooperado e, por conseguinte, do direito em permanecer integrado ao plano de saúde coletivo; e  
(b) CONDENAR a ré a pagar ao autor reparação civil por danos morais no montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais), com correção monetária pela Tabela Prática do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a partir da presente data (momento em que o valor foi arbitrado – Súmula n. 362 do STJ) e juros moratórios de 1% (um por cento) ao mês, estes contados desde a data do início dos eventos danosos (30.6.2008 – Súmula n. 54 do STJ).
Em razão da sucumbência, condeno a ré ao pagamento das custas e despesas processuais, bem como ao pagamento de honorários advocatícios em favor do patrono do autor, que fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação (CPC, art. 20, § 3º), sopesando para tanto a ausência de dilação do feito e a simplicidade da causa.
Tendo em vista o preenchimento aos requisitos do artigo 273 do Código de Processo Civil, na medida em que consta requerimento formulado pelo autor (fls. 2 e 13), bem como que a verossimilhança do direito se faz presente, porquanto até mesmo reconhecido em primeiro grau de jurisdição, além de existir receio de dano de difícil reparação (pois se aproxima a data em que haveria a exclusão definitiva do autor e seus dependentes do plano de saúde coletivo), reconsidero a decisão de fl. 46, e concedo em termos a antecipação dos efeitos da tutela, para o fim de determinar a manutenção do autor e seus dependentes no plano de saúde coletivo, sob pena de multa diária no valor de R$ 100,00 (cem reais), até o limite de cem mil reais. Anoto, ainda, que a presente decisão não exclui a necessidade de que o autor continue adimplindo com os respectivos custos do plano de saúde.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpram-se as Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo.
Registro, 24 de setembro de 2010.

AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

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