18 de agosto de 2011

Má-fé ao alegar má-fé


“Vistos, etc. 1. Relatório dispensado (art. 38, caput, da Lei nº 9.099/95). Decido. 2. Rejeito as questões preliminares defensivas. A petição inicial é apta, bem demonstrando as causas de pedir e os pedidos, além de atender a todos os requisitos formais contidos na legislação adjetiva civil. É oportuno anotar que os fatos e pedidos estão articulados de modo adequado e lógico, sendo a conclusão (utilização do artigo 20, inciso II, do CDC e reparação civil por danos morais) perfeitamente compatível com a narrativa. A ré é legítima a figurar no pólo passivo, porquanto seja a quem as assertivas da inicial imputaram a responsabilidade pelos danos morais e pelo vício de qualidade no serviço (inclusive, consoante se verá quanto ao mérito, está mesmo presente a responsabilidade da ré). Ainda, as alegações de ser risco excluído e de as obrigações terem sido cumpridas pela empresa ré nada guardam de cunho preliminar, integrando exclusivamente o mérito e como tal serão apreciadas. Quanto ao mérito, a pretensão guarda integral procedência. A matéria fática está bem comprovada e chega até
mesmo a ser incontroversa. A prova documental encartada aos autos comprova que: (a) a comunicação do sinistro à ré ocorreu em 10 de fevereiro de 2011, a vistoria foi realizada em 15.2.2011, mas que somente em 31.3.2011 foram iniciados os trabalhos de reparo, tendo a entrega do veículo ocorrido em 16.4.2011 (fl. 19); (b) a autora desembolsou ao todo R$ 2.859,37, sendo R$ 1.140,37 pelo preço final do seguro e R$ 1.719,00 pela franquia (fls. 23-24 e 98); (c) já por ocasião do veículo foi constatada diferença na coloração entre as peças que foram objeto de conserto e o restante do automóvel (fl. 21), o que é confirmado até mesmo pela própria ré (fl. 88); (d) o reparo no veículo foi realizado por oficina referenciada junto à empresa ré (fl. 19), não tendo a ré impugnado especificamente a assertiva inicial de que o reparo foi promovido por oficina com a qual mantém acordo operacional (fazendo surgir a presunção de veracidade contida no artigo 302, caput, do CPC); (e) a autora tentou antes resolver administrativamente a questão, recebendo expressa negativa por parte da ré (fl. 22); (f) a ré lançou a ofensiva afirmação de que a autora tenta obter vantagem ilícita e utilizando-se de “meio ardil” (fl. 96). Já a prova oral comprovou que (g) existiu uma ocasião em que o pára-choque do veículo caiu na rua. Ainda da prova oral, não tendo a parte ré em seu interrogatório sabido relatar se a autora foi informada que a pintura poderia ocorrer apenas em peças que tivessem sido danificadas, bem como se houve alguma ressalva por parte da ré quanto à cor do veículo e estado, há de se aplicar a pena de confissão, por inteligência ao artigo 343, § 2º, do Código de Processo Civil, porquanto o não conhecimento dos fatos da causa tenha equivalência material com a própria recusa a depor, pois em ambas as situações a parte ré deixa de trazer ao juízo informações que são relevantes para o deslinde das questões. Por conseguinte, com a confissão, tenho também como comprovado que (h) por ocasião do negócio jurídico de seguro não houve por parte da empresa ré qualquer ressalva quanto à cor ou ao estado de conservação do veículo e que (i) a autora não foi informada claramente acerca da alegada restrição de que somente peças que fossem danificadas e consertadas seriam objeto de pintura (ainda que causassem disparidade com o restante da cor do veículo). Resta, portanto, examinar a conformação jurídica dos fatos comprovados. A alegação defensiva de que a autora utilizou o veículo enquanto aguardava o conserto passa longe de evitar a responsabilização da ré. Com efeito, não havia qualquer obrigação contratual ou legal de que o veículo permanecesse imobilizado enquanto aguardava o efetivo conserto. Ainda, o veículo apenas foi utilizado justamente em razão da conduta desidiosa da própria ré, que não providenciou o pronto reparo do automóvel, tendo demorado por tempo expressivo. As alegações defensivas de que a diferença de coloração se relaciona ao desgaste das peças que não foram sinistradas e que isso ocorre também em razão de o veículo ter a cor branca não tem o condão de impedir a responsabilização. Nesse aspecto, bem ponderou a inicial que “a ré pode até não estar obrigada a proceder à pintura completa do veículo, mas certamente é obrigada a entregar o carro com a pintura uniforme”. Efetivamente, sendo objeto do seguro reparar o automóvel de modo a deixá-lo nas mesmas condições que antecediam ao sinistro, como antes o veículo tinha a cor uniforme, certamente que após o conserto a coloração também deve voltar a ser uniforme. Isso, além de decorrer de interpretação contratual (cláusula 2 do contrato), é até mesmo intuitivo e lógico. Afinal, ninguém contrataria um seguro se após o reparo fosse ficar com um veículo com cores díspares. É intrínseco ao conserto do veículo que a coloração final dele seja uniforme. Cuida-se inclusive de consectário inerente à boa-fé que deve nortear os negócios jurídicos. Mas não é só. Se houvesse de ser feita alguma ressalva quanto à coloração ou à idade do veículo e seu estado de conservação, isso precisava ter sido feito clara e expressamente ao tempo da contratação do seguro. Não tendo a empresa ré feito qualquer ressalva a esse respeito, deve arcar com o ônus de devolver ao contratante do seguro o seu veículo com coloração uniforme. Também se tencionava não promover a pintura integral do bem (para que ficasse uniforme), deveria já na contratação ter informado expressa e claramente à autora (consumidora) que em eventual sinistro somente seriam objeto de pintura as peças restauradas e que isso poderia acarretar que o automóvel ficasse com cores díspares. Agora, não tendo a ré ao tempo da contratação feito qualquer ressalva ou prestado informações claras e expressas sobre as restrições que entendia possíveis (restrições essas que, repita-se, não podem ser extraídas claramente do contrato e que violam a boa-fé objetiva), surge com clareza solar a sua responsabilidade. E como a ré não apenas é tida como fornecedora dos serviços inerentes ao seguro, como também é responsável pelos serviços de reparo que foram realizados em oficina com a qual nutre acordo operacional, o que, aliás, não apenas decorre de expressa disposição contratual (cláusula 11.7.2) como é também inerente à relação jurídica existente no caso (eis que participou da cadeia de consumo) é direito da consumidora exigir-lhe a restituição da quantia paga pela integralidade da relação jurídica (art. 20, inciso II, do CDC), quantia essa que totaliza (R$ 2.859,37, sendo composta pelo somatório do preço pago pelo seguro e do preço pago pela franquia). Essa restituição para ser integral deveria também remontar ao tempo dos efetivos desembolsos, todavia, não havendo informações precisas a esse respeito, deve-se tomar a data de aforamento da pretensão (3.5.2011), pois em tal momento já era certo que tinham ocorrido os desembolsos. Passo agora ao exame dos danos morais, os quais estão sobejamente presentes. Com efeito, inúmeros são os fundamentos e as condutas imputáveis à ré que são causadoras de danos morais. Veja-se. Primeiro, tem-se o próprio vexame inerente ao fato de a autora ter que trafegar com um veículo que apresenta cores díspares. Segundo, que a autora tentou resolver a situação de modo extrajudicial, mas recebeu tratamento desidioso por parte da ré, tendo iniciado real e sério calvário para buscar a solução do problema, o que extrapola em muito o mero aborrecimento. Terceiro, o longo tempo de espera entre a comunicação do sinistro (10.2.2011) e o efetivo conserto (16.4.2011), tendo ficado privada do uso adequado de um bem que na atualidade pode ser tido como essencial para a vida contemporânea; e ainda, tendo a triste surpresa de ao receber o veículo, recebê-lo em condições de serviço inadequado, com coloração díspar. Quarto, a aviltante e ofensiva afirmação realizada pelo pólo passivo de que a autora tenta obter vantagem ilícita e utilizando-se de “meio ardil” (fl. 96), quando, na realidade, está a lutar por um direito que existe e que efetivamente lhe cabe (e aqui, pelas mesmas razões, já afasto a alegação defensiva de que a autora teria litigado de má-fé); ou seja, já não bastasse o tratamento inadequado conferido à autora quando da sua tentativa de solução extrajudicial, também em juízo a empresa ré persistiu agindo de modo agressivo e hábil a ofender a dignidade da autora. Por todos esses fatores, tenho como presente o abalo moral. Assim, considerando que a fixação do valor da reparação moral deve ser suficiente a recompensar o lesado (sem ser irrisória e, ao mesmo tempo, sem se constituir em causa de enriquecimento indevido), bem como sopesando no caso as condições econômicas da ré (sólida e lucrativa empresa), a intensidade das ofensas (cujos efeitos repercutem ainda até a presente data, ou seja, já durando vários meses) e a suficiência para coibir a reiteração de condutas semelhantes (pois deve ser conferido tratamento digno e eficaz a todos os consumidores dos serviços prestados), reputo coerente a mensuração do valor para reparação dos danos morais na quantia de R$ 12.000,00 (doze mil reais) pretendida na inicial, a qual, segundo meu entendimento, é até mesmo módica diante da intensidade e gravidade das condutas da empresa ré. 3. Diante do exposto, julgo procedente a pretensão inicial, extinguindo o feito com resolução do mérito (CPC, art. 269, inciso I), para os efeitos de: (a) CONDENAR a ré a pagar à autora a quantia de R$ 2.859,37 (dois mil oitocentos e cinquenta e nove reais e trinta e sete centavos), com correção monetária pela Tabela Prática do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e juros moratórios de 1% (um por cento) ao mês, ambos contados desde 3 de maio de 2011; e (b) CONDENAR a ré a pagar à autora reparação civil por danos morais no montante de R$ 12.000,00 (doze mil reais), com correção monetária pela Tabela Prática do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a partir da presente data (momento em que o valor foi arbitrado – Súmula n. 362 do STJ) e juros moratórios de 1% (um por cento) ao mês, estes contados desde a data do início dos eventos danosos (15.2.2011 – Súmula n. 54 do STJ). Observa-se que a ré praticou atos atentatórios à dignidade da Justiça, pois alegou que a autora queria se aproveitar do processo para ter vantagem ilícita e requereu, inclusive, a condenação por litigância de má-fé. Evidentemente, tendo restado verificado no bojo do processo que a autora possui efetivamente os direitos pleiteados e que faz, sim, jus aos valores reclamados, quem litigou em manifesta má-fé foi a ré, ao tentar distorcer a verdade e, pior, afirmando levianamente que a autora estava de má-fé. Esse tipo de procedimento adotado não se coaduna com os imperativos de lealdade processual que se espera das partes. É claro que todos têm o direito de expor sua versão dos fatos e de se defender contra pretensões que lhe são dirigidas. Contudo, mesmo os direitos ao contraditório e à ampla defesa encontram limites, e o limite é exatamente o princípio da lealdade processual. Dizer serem indevidos os valores reclamados e afirmar não ter responsabilidade, embora sejam argumentos improcedentes não afrontam a razoabilidade; apenas trazem entendimento diverso. Ao revés, dizer que a autora está buscando vantagem ilícita, que “se utiliza de meio ardil” (fl. 96) e ainda pleitear sua condenação em razão disso, obviamente extrapola em muito os limites da defesa, passando à seara da ilegalidade. Por tais razões, forçoso reconhecer, de ofício (nesse sentido: STJ, AgRg no REsp 303245/RJ, rel. Min. Vasco Della Giustina, DJe 26.5.2010), o procedimento de má-fé adotado pela ré (art. 17, inciso V, do CPC), que, violando o dever de lealdade processual (art. 14, caput, do CPC), extrapolou seu direito ao contraditório e à ampla defesa, procedendo de maneira temerária e imputando fatos gravíssimos à autora. Reconheço, então, que a ré é litigante de má-fé, razão pela qual a condeno a suportar integralmente as custas processuais, bem como a pagar honorários advocatícios à patronesse da autora, os quais fixo em 20% (vinte por cento) do montante da condenação, na forma do art. 20, § 3º, do Código de Processo Civil, tendo em vista o grau de zelo da profissional e o tempo exigido para o serviço. Sentença publicada em audiência. Dou todas as partes por intimadas. Registre-se. Cumpra-se”.

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