20 de agosto de 2011

Previdenciário: segurados especiais



1ª Vara Judicial da Comarca de Jacupiranga
Autos nº 1070/2009
Autor:                       XXXX
Réu:                          Instituto Nacional do Seguro Social - INSS

S  E  N  T  E  N  Ç  A

Vistos, etc.
1. Relatório:
XXXX ajuizou contra o Instituto Nacional do Seguro Social pretensão de aposentadoria por idade, aduzindo ostentar a condição de segurado especial em razão do desempenho de atividade rural (fls. 2-13).
O INSS apresentou contestação sustentando preliminares de nulidade de citação e ausência de interesse de agir, bem como contrariando o mérito sob o argumento de ausência de início de prova material e da existência de vínculos urbanos (fls. 28-34).
Foi lançada réplica (fls. 41-55).
O processo foi saneado (fl. 65) e em sede de instrução houve o interrogatório do autor (fl. 72) e a inquirição de duas testemunhas (fls. 73 e 74).
As partes apresentaram alegações finais (fls. 81-88 e 91).  
É o relatório. Decido.

2. Fundamentação:
Rejeito as questões preliminares. Apesar da ausência de prévio requerimento administrativo, o interesse de agir surgiu no curso da demanda em razão da apresentação de resistência pelo INSS, que ofereceu contestação e contrariou a pretensão inicial. A eventual nulidade de citação restou suprida com o comparecimento da autarquia ré aos autos, inclusive com apresentação de efetiva defesa, de modo que o contraditório e a ampla defesa restaram devidamente atendidos, não havendo qualquer prejuízo concreto.
Quanto ao mérito, é segura a conclusão de que por expressivo lapso temporal e ao longo de sua vida o autor exerceu atividade rural em regime de economia familiar e também como braçal em regime de diária.
O fato de ostentar alguns vínculos urbanos não desnatura o caráter rural do seu principal modo de sobrevivência (e que, a considerar pela prova dos autos, perdurou ao longo de quase toda a sua vida).
E a prova acostada aos autos é hábil a demonstrar que pelo menos desde 1966 até a atualidade o autor atuou em trabalhos rurais em regime de economia familiar e também por diária, ainda que de forma descontínua. Nesse sentido merecem realce os documentos de fls. 17 (certificado de dispensa de incorporação ao exército, o qual comprova que em 1966 já trabalhava como lavrador) e 18-20 (sindicalização rural no período de março de 1982 a setembro de 1987) e a firme e harmônica prova oral (fls. 73 e 74), a qual inclusive trouxe indicativos de empregadores rurais que teve o autor ao longo de sua vida, tudo a corroborar a veracidade do quanto por ele declarado em seu interrogatório (fl. 72).   
Ou seja, há início de prova material e confirmação pela prova oral. Nesse aspecto cumpre observar que as limitações de provas trazidas pela Lei nº 8.213/91, bem como pelo Decreto nº 2.172/97, são inconstitucionais, uma vez que afrontam os princípios constitucionais do livre acesso ao poder judiciário (art. 5º, XXXV), da verdade real (art. 5º, LVI) e da produção das provas (art. 5º, LV).
Assim, e sendo nascido em 9.11.1947 (fl. 16), o autor reúne todos os requisitos previstos para o alcance da “aposentadoria”.
Porém, entendo que são inválidas as disposições do art. 39 da Lei nº 8.213/91 (que prevê a exigência apenas de trabalho rural, sem reclamar efetiva contribuição) em face da Constituição da República Federativa do Brasil.
Explico.
A seguridade social é composta pela saúde, pela previdência social e pela assistência social (CRFB, art. 194). O benefício pretendido pelo pólo ativo integra a previdência social e, como tal, deve se sujeitar às regras próprias desse sistema.
O regime jurídico constitucional da previdência social está assentado na ideia de que se constitua em proteção da renda das pessoas economicamente ativas, pois “se apenas os mais previdentes resolvessem fazer a contribuição para o seguro social, os demais, ao necessitarem da tutela estatal por incapacidade laborativa, causariam um ônus ainda maior a estes trabalhadores previdentes” (Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari. Manual de Direito Previdenciário. 3. ed. São Paulo: LTr, 2002, p. 38 - grifei). E para proteger essa concepção o Brasil adota o sistema de repartição, em que as contribuições sociais confluem para um fundo único, caracterizador da solidariedade (J. R. Feijó Coimbra. Direito Previdenciário Brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1997, p. 233) e do pacto de gerações entre os integrantes do sistema, de modo que “cabe à atual geração de trabalhadores em atividade pagar as contribuições que garantem os benefícios dos atuais inativos, e assim sucessivamente, no passar dos tempos” (Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari. op. cit., p. 43 - grifei).
Como se percebe, todo o arcabouço que ensejou o sistema da previdência social no Brasil está assentado na contribuição pelos integrantes (pois mesmo quando se preveem períodos de graça ou de possibilidade de pronta prestação de benefício tão logo atingido o status de segurado obrigatório, estão eles relacionados à existência de anterior ou futura contribuição).
Com efeito, se não vertem adequadamente as contribuições, o sistema resulta fadado ao fracasso, em detrimento de todos aqueles que já contribuíram e que estarão impossibilitados de colher o produto de seu antecipado dispêndio financeiro. Então, o pilar que possibilita o funcionamento da estrutura e do ideário da previdência social é o axioma da contributividade (caráter contributivo da previdência social), que foi expressamente estatuído no art. 201, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil. Nesse diapasão, “a universalidade, no que tange ao regime previdenciário oficial, também corresponde à exigência de que o segurado venha a contribuir para o custeio do regime. Isto é, não há direito a benefício àquele que não é contribuinte do regime (idem, p. 88 - grifei).
Para assegurar a eficácia do sistema e os direitos dos contribuintes, a Constituição dotou o caráter contributivo da sua anexa preservação do equilíbrio financeiro e atuarial (art. 201, caput, da CRFB), como garantia dada às gerações presentes que contribuem, de que no futuro não serão desamparadas pela falência do sistema, e, segundo o qual, a execução da política previdenciária deve “atentar sempre para a relação entre custeio e pagamento de benefícios, a fim de manter o sistema em condições superavitárias ” (ibidem, p. 89). Assim é que qualquer majoração, criação ou ampliação do leque de beneficiários deve também ser precedida da respectiva fonte de custeio (CRFB, art. 195, § 5º).
Destarte, é sopesando esses fatores que reputo constitucionalmente inválidas as disposições do art. 39 da Lei nº 8.213/91 no que toca à exigência apenas de trabalho rural, sem contribuição, para a obtenção de algumas prestações previdenciárias.
Com efeito, sem contribuição, viola-se o caráter contributivo do sistema, ferindo a universalidade e solidariedade entre os integrantes (pois pessoa alheia ao sistema passa a usufruir de prestações sustentadas pelos que contribuem efetivamente, sem lhes dar correlata e prévia contraprestação), abalando o equilíbrio financeiro e atuarial (já que pessoas até então desconhecidas pelo sistema passam a tomar prestações, as quais estão desacompanhadas de prévia contribuição, gerando surpresa e descompasso entre as receitas e despesas), atingindo o pacto de gerações (na medida em que a geração que atualmente contribui passa a ter incerteza quanto à higidez do sistema na época em que necessitar passar para a inatividade, bem como porque passa a arcar não apenas com as prestações da geração que já contribuiu ou está contribuindo, como também com as prestações daqueles que nunca contribuíram e que não se tem perspectiva de que venham a contribuir), prejudicando o custeio (onerando indevidamente os contribuintes do sistema por algo que incumbiria apenas ao Estado prover), e, ainda, a previsão legal não trouxe previamente a fonte que possibilitaria o alargamento das pessoas beneficiadas com as prestações previdenciárias sem que houvesse desequilíbrio de contas.
Necessário observar, também, que a própria Constituição, em atendimento ao corolário da isonomia (CRF, art. 5º, caput), já previu tratamento diferenciado para as pessoas que não se encontram na área urbana, o que está delineado no seu art. 195, § 8º, segundo o qual, “o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei” (grifei); ou seja, as pessoas que exercem atividades que não sejam tipicamente urbanas possuem tratamento constitucional diferenciado e privilegiado, porém, para que possam obter benefícios previdenciários também devem contribuir; isso está expresso no texto da Carta Magna.
Não há de se cogitar que a legislação infraconstitucional traz situação mais benéfica em sede de direitos humanos e que por isso deveria prevalecer; isso porque apesar de versar sobre caracteres de dignidade humana, não constitui em pura prestação estatal em benefício da pessoa, mas que na realidade é suportada pelos contribuintes da previdência social (ou seja, não é um direito humano propriamente dito, pois não é exercido pela pessoa em face do Estado, consistindo em tentativa de exercício de uma pretensão em detrimento de um grupo de interesse coletivo – os contribuintes do sistema, que entre si estão ligados em função de uma relação jurídica base).
Desse modo, apenas quem contribui para a previdência social (quer de maneira plena, quer da forma diferenciada do art. 195, § 8º, da CRFB) faz jus ao benefício da aposentadoria de índole previdenciária. E no presente caso não houve recolhimento de contribuições pelo pólo ativo em período igual ou superior à carência.
Calha anotar que a existência de benefícios previdenciários concedidos em favor de pessoas que não contribuíram para o sistema é um dos fatores preponderantes a ensejar o que se convencionou chamar midiaticamente de “rombo da previdência” (déficit nas contas).
Exemplificativamente, para o exercício de 2009 a área rural teve uma arrecadação previdenciária de 4,6 bilhões de reais, mas a despesa foi do montante de 45,5 bilhões de reais; enquanto que na área urbana a arrecadação previdenciária foi superior à despesa com o pagamento de benefícios (fonte: revista comemorativa dos 87 anos da Previdência Social, publicada pelo Ministério da Previdência Social em março de 2010, matéria contida na página n. 33).
Portanto, infere-se que enorme parcela dos benefícios previdenciários corresponde a benefícios concedidos a pessoas que não contribuíram para o sistema, o que obviamente somente poderia ter uma consequência: um grande déficit nas contas, havendo desequilíbrio entre as receitas e as despesas. Assim não fosse e haveria superávit; no mínimo, o déficit seria pequeno. E tal fator é tão nefasto que inclusive já gerou a adoção de medidas extremamente prejudiciais às pessoas que contribuíram e que contribuem para o sistema, sendo o exemplo mais claro disso a taxação dos inativos.
Ou seja, o equívoco legislativo gerou desvio de foco e a sociedade foi convencida de que o sistema previdenciário é enormemente deficitário, quando, na realidade, o maior déficit é causado justamente porque o Estado em vez de prestar benefício assistencial às pessoas que apresentam condições especiais colocou-as no mesmo balaio das estatísticas previdenciárias.
Em resumo até aqui se tem que: (a) o pólo ativo reúne todos os requisitos previstos para o alcance da “aposentadoria” como segurado especial; (b) o legislador quis criar um benefício que amparasse pessoas em determinados regimes especiais sem a necessidade de contribuição e optou por criar situações de dispensa de contribuições; mas, (c) andou mal o legislador, pois não podia dispensar contribuições em detrimento do sistema e seus contribuintes, fazendo com que isso padecesse de invalidade perante a Constituição da República Federativa do Brasil, além gerar nefastos efeitos em detrimento dos contribuintes do sistema; e (d) o correto seria que tivesse criado benefício de cunho assistencial, com pura prestação estatal (integralmente suportada pelo Estado), e aí sim traduzindo direito humano, porque exercitado apenas em face do Estado.
Diante desse quadro, é inequívoco que o legislador quis implantar benefício em favor de pessoas em determinadas condições especiais. Todavia, há necessidade de se corrigir o equívoco, removendo o benefício (inclusive do plano estatístico) da seara previdenciária e incluindo-o no campo assistencial.
Conjugando essas necessidades, tenho como inviável a concessão da aposentadoria aos segurados especiais, assim como é inviável o condicionamento da “aposentadoria” de molde a que o INSS a enquadre como oriunda do plano assistencial (isso esbarraria até no controle informatizado atualmente existente no INSS para pagamento dos benefícios). Vale dizer, existe um impasse. Ocorre que esse impasse pode ser resolvido com a analogia (art. 4º da LICC).
Isso porque há outro benefício assistencial equivalente, que possui configuração financeira semelhante à aposentadoria aos segurados especiais e que bem corrige a alocação no âmbito da assistência social, inclusive sob os prismas estatísticos, de aporte de recursos provenientes do Estado e de verterem os benefícios com exclusividade às pessoas que se encontram nas condições especiais. Cuida-se do amparo social.
Por tais razões, como o pólo ativo teria direito à aposentadoria por idade aos segurados especiais, mas como não entendo possível tal benefício integrar a previdência social, por analogia reputo ser viável a concessão de amparo social, desde que vedada a suspensão ou cancelamento administrativo.
Anoto que apesar de tal benefício não ser o ventilado expressamente na petição inicial, é o que decorre da conformação jurídica dos fatos colocados à apreciação jurisdicional. Tem lugar, portanto, a aplicação da teoria da substanciação da causa de pedir (naha mihi factum dabo tibi ius). Em caso análogo já se posicionou nesse sentido (da possibilidade de concessão de benefício diverso do postulado) o Superior Tribunal de Justiça: REsp 847587, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJE, 1.12.2008.    
 3. Dispositivo:
Diante do exposto, e extinguindo o feito com resolução de mérito (artigo 269, inciso I, do CPC), JULGO PROCEDENTE EM PARTE a pretensão formulada na inicial contra o Instituto Nacional do Seguro Social para os efeitos de:
(a) impor ao réu a obrigação de conceder amparo social ao autor, com RMI e RMA de um salário-mínimo e DIB em 19 de fevereiro de 2010 (data da citação – fl. 26), sendo vedada a suspensão ou cancelamento administrativo; e
(b) condenar o réu ao pagamento de todas as prestações vencidas e vincendas desde a DIB (19.2.2010) até a efetiva implantação, com acréscimo de juros de mora e de correção monetária, ambos calculados pelos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança, incidentes de uma única vez, até o efetivo pagamento (art. 1º-F da Lei n. 9.494/97, na redação dada pela Lei n. 11.960/09).
Concedo a tutela liminar da prestação específica. É relevante o fundamento da demanda, pois as provas encartadas ao feito demonstram o direito do autor em obter o benefício ora concedido, tanto que já recebeu provimento meritório a esse respeito em primeiro grau de jurisdição. Existe justificado receio de ineficácia do provimento final, o que além de ser intrínseco à modalidade da prestação, decorre da condição de carência econômica do autor (fl. 15). O requisito da reversibilidade da medida é mitigado pelo prestígio que deve ser conferido à dignidade da pessoa humana. Destarte, com esteio no artigo 461, § 3º, do Código de Processo Civil, concedo medida liminar para o efeito de determinar provisoriamente a implantação do benefício de amparo social em favor do autor XXXX.
Oficie-se com urgência à EAVDJ Santos (Equipe de Atendimento a Decisões Judiciais) para que providencie o cumprimento à medida liminar (com implantação do benefício) no prazo de 30 dias. Instrua-se o ofício com cópia da presente decisão e informe-se o nome completo do beneficiado, a data de nascimento, o endereço, o número do RG e do CPF.
Tendo em vista que o valor dado à causa é inferior a sessenta salários mínimos, o caso se enquadra na previsão do art. 109, § 3º, da Constituição da República Federativa do Brasil, combinado com o art. 1º da Lei nº 10.259/2001, c/c o art. 55 da Lei nº 9.099/95, razão pela qual não há condenação em custas ou honorários nesta instância.
Sentença não sujeita a reexame necessário, por versar condenação ilíquida e o valor atualizado da causa não suplantar o montante exigido para o recurso de ofício (artigo 475, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil).
Ciência ao Ministério Público do Estado de São Paulo.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpra-se.
Jacupiranga, autodata.

AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

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