24 de agosto de 2011

fraude em licitação e fraude em concurso público: âmbito cível



1ª Vara Judicial da Comarca de Jacupiranga
Autos nº 909/2004 e Medida Cautelar nº 856/2004
Autor:                       Ministério Público do Estado de São Paulo
Réus:                        J
                                 O 
                                 Je
                                 M 
                                 I
                                 Â
                                 G 
                                 F
                                 C 
                                 L
                                 E S/C Ltda.
                                 Al – ME e
                                 Al
Litisconsorte:           Município de Jacupiranga
                                              
S  E  N  T  E  N  Ç  A

Vistos, etc.
1.    Relatório:
O Ministério Público do Estado de São Paulo propôs ação civil pública (fls. 2-72) com o objetivo de que sejam declaradas as nulidades do procedimento licitatório 23/04 e do concurso público 01/04 (realizados pelo Município de Jacupiranga), condenado o pólo passivo a restituir aos candidatos os valores pagos pelas inscrições, e tidos os réus como incursos em atos de improbidade administrativa com a aplicação das sanções correspondentes. As pretensões vieram fundamentadas pela alegação de fraudes e violações aos princípios que regem a administração pública, tendo sido dirigidas contra o então alcaide (J), os membros da comissão de concurso (O, Je, M, I e A) e de licitação (G, F e C) e as empresas e respectivos responsáveis legais que teriam participado da licitação e da realização do concurso (L, E S/C Ltda., Al e Al – ME). Antes, porém, ajuizou medida cautelar preparatória pretendendo a busca e apreensão de documentos e o impedimento da posse dos aprovados no concurso, cuja liminar foi deferida.   
Notificados, os réus e o Município de Jacupiranga ofereceram manifestações escritas (fls. 1312-1315, 1353-1355, 1367-1369, 1377-1380, 1387-1391, 1397-1404 e 1414-1442).
Com a rejeição das matérias preliminares, a demanda foi recebida (fls. 1455-1460).
Realizadas as citações, as contestações foram apresentadas (fls. 1601-1618, 1625-1630, 1632-1640, 1652-1661, 1667-1670, 1675-1705 e 1706-1724), com alegações preliminares de perda de objeto, carência da ação, inépcia da inicial, inconstitucionalidade formal e material da lei de improbidade administrativa, litisconsórcio necessário com os aprovados no concurso, incompatibilidade da ação civil pública com a ação ordinária por ato de improbidade; e oposição quanto ao mérito sob os argumentos de inocorrência de participação nos fatos, ausência de prejuízo ao erário e de não estar presente má-fé caracterizadora de improbidade.  
A réplica foi lançada (fls. 1726-1736) e o feito restou saneado (fls. 1752-1753).
Durante a instrução foram tomados depoimentos pessoais (fls. 1831, 1832, 1833, 1834, 2015, 2016 e 2017), inquiridas quatro testemunhas (fls. 1855, 1867, 2018 e 2019) e realizada perícia grafotécnica (fls. 1921-1926).
As partes apresentaram alegações finais (fls. 2024-2070, 2077-2080, 2085-2105, 2108-2112, 2114-2116, 2118, 2119-2127, 2128-2134).
É o relatório. Decido.

2.    Fundamentação:
Inicialmente, tendo em vista que a administração pública utilizou sua autotutela e anulou o procedimento licitatório 23/04 e o concurso público 01/04, providenciando a restituição aos candidatos dos valores pagos pelas inscrições, tornou-se inafastável a conclusão de perda superveniente do interesse processual (CPC, art. 267, inciso VI) quanto a três dos pedidos deduzidos na inicial – as duas declarações de nulidade e a condenação à restituição de valores aos candidatos.
E como não será objeto do dispositivo a declaração de nulidade do concurso, os aprovados não são considerados litisconsortes necessários, de modo que nenhum vício há em não terem sido citados.
Tampouco há nulidade em o parquet haver presidido o inquérito civil e figurado como autor da demanda, pois até mesmo na seara criminal o posicionamento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de admissibilidade dos poderes investigatórios do Ministério Público para as ações de sua competência (nesse sentido: STF, RE 468523/SC, rel. Min. Ellen Gracie, DJe 030, 18.2.2010).
Mesmo os agentes políticos municipais estão sujeitos à aplicação da Lei n. 8.429/1992 (a respeito: STJ, REsp 1192583/RS, rel. Min. Eliana Calmon, DJe 8.9.2010), não havendo que se falar em bis in idem frente ao Decreto-lei n. 201/67, visto que enquanto um diploma tem caráter civil, o outro regula crimes de responsabilidade.  
As demais questões preliminares estão superadas, pois as decisões de recebimento da inicial e de saneamento já as afastaram.
Apesar do perecimento parcial do objeto, isso não impede o exame da improbidade administrativa. É que apesar de já haverem sido anulados a licitação e o concurso público, as irregularidades podem e devem ser analisadas como causa de pedir da pretensão de improbidade. Isso porque o exercício da autotutela administrativa não tem o condão de apagar da realidade fática a existência de atos ímprobos. 
A ausência de dano ao erário e de enriquecimento ilícito com o não pagamento dos valores decorrentes do contrato administrativo à empresa vencedora da licitação fraudada impede a incursão nas condutas dos artigos 9º e 10 da LIA. Porém, não obstam a apuração de comportamentos previstos no artigo 11 da LIA. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça “firmou-se no sentido de que o ato de improbidade por lesão aos princípios administrativos (art.11 da Lei 8.249/92), independe de dano ou lesão material ao erário” (STJ, REsp 1182968/RJ, rel. Min. Eliana Calmon, DJe 30.8.2010).    
E, de fato, a violação em ambos os expedientes administrativos dos deveres de honestidade, legalidade e imparcialidade, culminando com a negativa de publicidade de ato oficial e a frustração da licitude de concurso público está explícita nos autos.
Não bastasse a comprovação pelos documentos que instruíram a inicial e a confirmação realizada pela própria municipalidade, com o reconhecimento de que os procedimentos estavam eivados de nulidades (lançando mão da autotutela administrativa), a fase instrutória culminou com a realização de mais provas que tornaram robustamente verificada a existência das fraudes.
A licitação para realização do concurso público, em que se sagrou vencedora a empresa E S/C Ltda. (cujo representante legal era L), não apenas foi dirigida para beneficiar apenas uma empresa, como foi integralmente arquitetada e montada de modo fraudulento.
R, representante legal de uma das empresas que supostamente teriam figurado como participantes, atestou que não participou da licitação e que sua empresa sequer realizava concursos públicos (fl. 1855). Isso se confirmou pela perícia grafotécnica que atestou a falsidade das assinaturas apontadas como sendo dela nos documentos que integraram a licitação (fls. 1921-1926).
Também Al, representante legal da empresa Al – ME, declarou não haver participado do processo de licitação (fl. 1831), o que também se confirmou com a falsidade atestada pela perícia grafotécnica (fls. 1921-1926).
Os próprios integrantes da comissão de licitação narraram a existência de irregularidade. G disse que no dia anterior à realização do concurso a pessoa de D solicitou que assinasse documentos do procedimento licitatório, tendo assinado por haver ficado preocupado em não prejudicar o concurso e recordando-se, sem certeza, de que D teria citado o nome de Eun (fl. 1833). F também contou não haver participado da licitação, relatando que no dia anterior ao concurso D lhe havia solicitado que a pedido de Eun assinasse os documentos (fl. 1832). C disse que apenas participou da abertura das propostas, não tendo atuado em quaisquer outros atos da licitação (fl. 1834). A testemunha V, que trabalhava com G, confirmou que D havia levado os papéis para G na sexta-feira anterior ao concurso e ele “teve” que assinar (2019).
Quanto à nulidade do concurso em si, destacam-se a ausência de veiculação na imprensa da retificação do resultado final; a participação e aprovação de filho de integrante da comissão organizadora e, principalmente, os crassos erros até mesmo na correção de provas objetivas, o que beneficiou e alçou ao primeiro lugar pessoa que desde 25.3.2004, antes mesmo da realização do concurso, já se tinha notícia de que seria privilegiada por suas ligações com integrantes da administração municipal (como bem descrito às fls. 24 e 25).     
Destarte, resultou inequívoca a presença de fraude em ambos os procedimentos.
O dolo da empresa que venceu a licitação e realizou o concurso (E S/C Ltda.), bem como de seu representante legal, por ser quem administrava os interesses da pessoa jurídica (L), é inequívoco, tanto por ser a beneficiária da licitação fraudada e que lhe foi explicitamente dirigida, quanto por ter chancelado a fraudulenta correção de provas.
O dolo do então prefeito (J) também emana dos autos. Emerge primeiramente do fato de ser o responsável final pela edição dos atos administrativos nos procedimentos fraudados. Em segundo lugar, por haver se mantido inerte quanto às anulações durante o trâmite do inquérito civil, inclusive propiciando a oposição via agravo de instrumento contra a decisão que deferiu a liminar na medida cautelar, tentando obstar a apreensão dos documentos que se faziam úteis e necessários à instrução do feito, somente vindo a providenciar as anulações do concurso e da licitação depois de o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo haver confirmado a liminar e após o ajuizamento da ação civil pública principal; tal modo de agir, com a devida vênia, traduz que a utilização da autotutela administrativa teve mais por intuito evitar que viesse a ser judicialmente obrigado a ressarcir prejuízos ao erário e aos candidatos do concurso, do que contribuir para a moralidade pública. Em terceiro lugar, porque sendo aquele um ano de eleições municipais, a realização de concurso fraudado e para um expressivo número de vagas lhe traria benefícios políticos (caso a fraude não fosse descoberta), permitindo inclusive que atribuísse vínculo efetivo às pessoas de seu interesse, além de perpetuar tentáculos no seio da administração pública. Em quarto lugar, porque as pessoas que participaram da materialização da fraude na licitação (D e Eun) eram ligadas ao alcaide, pois com a sua saída do cargo de prefeito também elas deixaram as funções que ocupavam junto ao Município de Jacupiranga (conforme depoimento de fl. 1832). Ademais, pela expressão e importância que teria o concurso, não é crível que o Chefe do Poder Executivo não acompanhasse o seu andamento.                
Em relação a Al e sua empresa existem veementes indícios de haverem participado com dolo das fraudes, pois Al participou da fiscalização do concurso intitulando-se representante da empresa organizadora e a contratada para correção de provas tem sede no mesmo lugar de sua empresa. Todavia, há dúvida razoável quanto ao seu envolvimento ativo nas fraudes, pois não lhe pertencia a empresa contratada para a correção de provas e, principalmente, também teve falsificadas suas assinaturas nos documentos coligidos ao procedimento licitatório (fls. 1921-1926).
Já quanto aos membros da comissão de concurso (O, Je, M, I e A) e de licitação (G, F e C) ficou patente nos autos que foram utilizados como meros títeres para a atribuição de uma falsa aparência de legalidade aos procedimentos, não havendo como se alcançar certeza de que não tivessem agido meramente impelidos pelo temor decorrente do próprio sistema inerente ao funcionalismo ou imbuídos de uma equivocada (porém, sem má-fé) intenção de não prejudicar a realização do concurso que, se fosse conduzido com lisura, teria sido oportuno e proveitoso para a comunidade local.
Nessa orientação, tenho que os réus J, E S/C Ltda. e L incorreram no artigo 11, caput, e incisos IV e V, da Lei de Improbidade Administrativa, estando sujeitos às penas do artigo 12, inciso III, da LIA. 
Considerando as sanções possíveis de acordo com a condição de cada uma das pessoas, sopesando os mesmos elementos já apontados por ocasião do exame acerca da presença do dolo, a intensidade da ofensa à moralidade pública, que a fraude ocorreu em dois procedimentos (inclusive com confecção de documentos falsos), o prejuízo de tempo imposto aos candidatos que realizaram o concurso (além da intrínseca frustração do anseio em participar de um certame conduzido com lisura e com reais expectativas de correta aprovação), bem como atento à proporcionalidade, aplico as seguintes penas:
• Para J: suspensão dos direitos políticos por quatro anos, pagamento de multa civil de duas vezes o valor da remuneração que percebia quando Prefeito do Município de Jacupiranga (a ser monetariamente corrigida pela Tabela Prática do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo), e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
• Para L: suspensão dos direitos políticos por quatro anos e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
• Para E S/C Ltda.: proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócia majoritária, pelo prazo de três anos.
Por fim, cabe examinar também a medida cautelar, que guarda procedência. É que as fraudes na licitação e no concurso restaram até mesmo comprovadas na demanda principal, confirmando a presença do fumus boni iuris, enquanto que o periculum in mora decorria mesmo da necessidade de preservação de provas e de evitar prejuízos irrepetíveis ao erário.   
3. Dispositivo:
Diante do exposto:
(a) Ao tempo em que confirmo a liminar, julgo procedente a pretensão contida na medida cautelar.
(b) Julgo extinto o feito principal sem resolução de mérito quanto aos pedidos de declaração de nulidade e de condenação à restituição de valores aos candidatos, nos moldes do artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil.
(c) Julgo improcedente a pretensão principal de improbidade administrativa em relação aos réus Al, Al – ME, O, Je, M, I, A, G, F e C.
 (d) Julgo procedente a pretensão principal de improbidade administrativa em relação aos réus J, E S/C Ltda. e L, tendo-os como incursos no artigo 11, caput, e incisos IV e V, da Lei de Improbidade Administrativa, sujeitando-os, com fundamento no artigo 12, inciso III, da LIA, às seguinte penas:
• Para J: suspensão dos direitos políticos por quatro anos, pagamento de multa civil de duas vezes o valor da remuneração que percebia quando Prefeito do Município de Jacupiranga (a ser monetariamente corrigida pela Tabela Prática do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo), e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
• Para L: suspensão dos direitos políticos por quatro anos e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
• Para E S/C Ltda.: proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócia majoritária, pelo prazo de três anos.
(e) O autor, à vista da sua condição, não está sujeito ao pagamento de honorários advocatícios (JTJSP 213/90 e 219/109) e nem de custas e despesas processuais. Porém, em razão da sucumbência recíproca, condeno os réus J, E S/C Ltda. e L ao pagamento, pro rata, de metade das custas e despesas processuais.
Traslade-se cópia da presente sentença para os autos da medida cautelar preparatória.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpram-se as Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo.
Jacupiranga, 15 de outubro de 2010.

AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

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