14 de novembro de 2011

Fornecimento reiterado de drogas para uso compartilhado também é tráfico



Vara Judicial do Foro Distrital de Pariquera-Açu
Autos nº 086/2011
Autor:                       Ministério Público do Estado de São Paulo
Denunciado:             XXXX

S  E  N  T  E  N  Ç  A

Vistos, etc.
1. Relatório:
XXXX foi denunciado como incurso nas sanções do artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/2006 em razão de tráfico de drogas ocorrido no dia 5 de março de 2011 (fls. 2d-4d).
O recebimento da denúncia ocorreu em 24 de março de 2011 (fl. 38) e, depois da apresentação da defesa (fls. 49-55), resultou confirmado (fl. 76).
Durante a instrução foram inquiridas seis testemunhas e o réu foi interrogado.
Em alegações finais a acusação realizou exame sobre as provas e pugnou pela procedência da denúncia (fls. 138-143).
A defesa sustentou quanto ao mérito tese de que as drogas se destinavam ao consumo próprio do acusado e ao fornecimento eventual e gratuito a pessoa do seu relacionamento, não havendo provas de que estivesse a traficar. Subsidiariamente requereu a aplicação do redutor em seu grau máximo, a fixação de regime aberto e a substituição por penas restritivas de direitos (fls. 145-169).
É o relatório. Decido.
2. Fundamentação:
A existência do crime está demonstrada pelo auto de exibição e apreensão (fls. 9-10), pelas fotografias (fls. 24 e 25), pelo laudo de constatação (fls. 11-12) e pelo exame químico toxicológico (fl. 85), sendo que este último atestou pericialmente ser droga a substância, estando relacionada na Portaria SVS/MS 344, de 12 de maio de 1998.
Quanto à autoria, não há dúvidas de que as drogas apreendidas estivessem em poder do acusado e a ele pertencessem, pois tanto os policiais confirmaram haver apreendido as drogas em poder do acusado, como ele próprio em seu interrogatório judicial assumiu que havia adquirido as drogas.
O cerne da controvérsia estabelecida nos autos diz respeito à destinação das drogas, sendo nesse aspecto que a defesa sustenta que parte era para o uso próprio e parte para o uso compartilhado e gratuito com o primo do acusado, a testemunha T.
Com a devida vênia, mesmo se fosse assumida como verdadeira a alegação, não seria possível a desclassificação.
Isso porque o artigo 33 da Lei nº 11.343/2006 ao trazer a previsão do seu § 3º o fez com o intuito de trazer uma modalidade mais branda de tráfico para aquela pessoa que de um modo isolado em algum momento de sua vida cometeu o erro de oferecer droga a pessoa de seu relacionamento para consumo conjunto e sem objetivo de lucro. Por isso que a previsão legal expressamente exige que isso tenha ocorrido eventualmente.    
E no presente caso a versão do acusado e do seu primo (mesmo se assumidas como verdadeiras) tornam claro que esse consumo conjunto de drogas não ocorria de modo eventual (isolado), mas sim como uma constante. O consumo compartilhado ocorrida de modo frequente e até mesmo habitual. Com efeito, o exame atento do interrogatório do acusado demonstra que ele disse que sempre consumia drogas juntamente com T e com mais dois primos. O próprio T contou que usavam juntos de cinco a seis pedras por noite. Mais, como cada pedra de crack custaria dez reais, das cinquenta e sete pedras de crack que estavam em poder do acusado apenas duas seriam pertencentes a T, de modo que nas outras cinquenta e cinco pedras haveria uso compartilhado, o que demonstra inegavalmente que não se trataria de situação episódica e sim frequente, de modo que por não ser eventual seria por si só suficiente a ensejar a condenação por tráfico de drogas, afastando a possibilidade de aplicação do § 3º do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006.
Isso não bastasse, ainda que parcela das drogas fosse para consumo pessoal do acusado ou compartilhado com os primos, há elementos de convicção hábeis a demonstrar que outra parcela seria destinada à revenda.
Nesse aspecto tem-se: (a) a expressiva quantidade de drogas (cinquenta e sete pedras de crack); (b) a circunstância de que enquanto em poder do acusado não foi encontrado qualquer apetrecho típico de usuário de crack (com cachimbo, por exemplo), estava em poder de relevante quantia em dinheiro (máxime diante dos precários padrões econômicos desta região), com dois aparelhos de telefonia celular, uma motocicleta e quando abordado se encontrava em local escuro (situações essas indicativas mais de traficância do que de mero uso); (c) ser pouco crível que fosse usuário assíduo de crack (a ponto de consumir de cinco a seis pedras de crack por noite, como disse T em juízo; e de estar disposto a consumir cerca de mais cinquenta e sete pedras de crack), tanto que a testemunha D (que tinha contato frequente com o acusado em razão do trabalho) sequer soubesse que ele usasse drogas; (d) a circunstância de que o réu sequer soube especificar quantas pedras em média usava por dia, além de também não conseguir explicar qual seria a sua renda mensal aproximada; (e) o fato de que a diligência policial que culminou com a localização e prisão do acusado ter sido motivada por notícia (via telefone 190) relacionada ao tráfico de drogas; e (f) porque se XXXX e T usariam as drogas em conjunto e no sítio (como alegaram), não havia razão plausível para que pretendessem se encontrar em local público e estando um deles em poder de expressiva quantidade de crack.
É diante desse somatório de elementos que resulta a convicção de incursão do réu no crime disposto no artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/2006, motivo pelo qual ficam afastadas as teses defensivas de mérito.
Não obstante, tem incidência o disposto no § 4º do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006, pois não há nos autos elementos no sentido de que o acusado fosse dedicado a atividades criminosas ou que integrasse organização criminosa, ostentando primariedade.
Assim, a conduta humana praticada pelo acusado se amolda ao disposto no artigo 33, caput e § 4º, da Lei nº 11.343/2006, estando verificadas no caso a antijuridicidade e a culpabilidade. Oportuno consignar que não se faz necessária instauração de incidente de dependência toxicológica. O réu não apresentava comportamento de pessoa acometida de dependência, tanto que a testemunha D sequer soubesse que ele usasse drogas. Inclusive, a análise do interrogatório do acusado permite concluir que se encontrava ele orientado no lugar e no espaço, tendo raciocínio adequado para responder às perguntas. A esse respeito, mutatis mutandis: STJ, HC 84322/PA, rel. Min. Felix Fisher, DJe 21.6.2010.
3. Dispositivo:
Diante do exposto, julgo procedente a pretensão punitiva consubstanciada na denúncia para o fim de CONDENAR o acusado XXXX como incurso nas sanções do artigo 33, caput e § 4º, da Lei nº 11.343/2006.
Nessas condições e partindo do mínimo legal, passo à dosimetria e individualização da pena, com observância ao sistema trifásico adotado pelo Código Penal (CP, art. 68).
Na primeira fase reputo desfavorável a circunstância da culpabilidade. Dentre as diversas expressões da culpabilidade no direito penal, no momento da dosimetria funciona como limite da pena, agindo como “elemento de determinação ou de medição” (Cezar Roberto Bitencourt. Tratado de Direito Penal: parte geral. 9ª ed., Saraiva, p. 607). Como explica a exposição de motivos do Código Penal (Lei nº 7.209/84) em sua nota 50, a opção legislativa pela utilização de tal circunstância reside na observação de que “graduável é a censura, cujo índice, maior ou menor, incide na quantidade da pena”. Trata-se, a meu ver, da mais importante e ampla circunstância judicial. A avaliação, assim, deve passar pelo exame do maior ou menor grau de reprovabilidade da conduta praticada, não só em razão das condições pessoais do agente, como também em vista da situação de fato em que ocorreu a ação delitiva. No caso, e especialmente atento ao disposto no art. 42 da lei antidrogas, a quantidade (57 porções) e a qualidade da droga (crack), que se insere dentre as mais nefastas, demonstram que a conduta merece maior grau de censura, razão pela qual elevo a pena em seis meses de reclusão e cinquenta dias-multa. Pena base: cinco anos e seis meses de reclusão e quinhentos e cinquenta dias-multa.
Na segunda fase não incidem atenuantes e nem agravantes, valendo observar que a versão apresentada pelo acusado não consiste em confissão completa a ponto de ser hábil a ensejar a correlata atenuante. Pena provisória: cinco anos e seis meses de reclusão e quinhentos e cinquenta dias-multa.
Na terceira fase não incidem causas de aumento, mas incide a causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006, de modo que reduzo a pena à metade, sopesando para tanto a culpabilidade (diante da grande quantidade de 57 pedras e sendo o crack uma das drogas mais nefastas) e tendo em vista que o saldo de pena a cumprir se revela compatível e proporcional com a conduta praticada. Pena definitiva: 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de reclusão e 275 (duzentos e setenta e cinco) dias-multa.
Quanto ao regime inicial de cumprimento de pena – embora possua entendimento pessoal de que é constitucionalmente válida a norma de início em regime fechado (art. 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/90), por ser intrínseca ao art. 5º, inciso XLIII, da Constituição da República Federativa do Brasil – em regra tenho procurado seguir em minhas decisões os entendimentos mantidos pelos tribunais, pois assim se confere efetivo cumprimento aos axiomas da celeridade, da economia processual, da razoável duração do processo e da máxima efetividade dos provimentos jurisdicionais, todos erigidos a status constitucional com a Emenda Constitucional nº 45 (art. 5º, inciso LXXVIII, da CRFB). Desse modo, ressalvando meu diverso entendimento pessoal, observo que o Superior Tribunal de Justiça está com firme orientação no sentido de que o regime inicial deve ser examinado de acordo com o caso concreto (STJ, HC 160800/SP, rel. Min. Og Fernandes, DJe 24.5.2010).
Nessa orientação, sopesando a nefasta qualidade e a quantidade da droga (que recomendaria regime mais rigoroso) em cotejo com a primariedade do agente, reputo adequado o regime intermediário. Assim, o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade deve ser o semiaberto, a ser executado em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar, de acordo com a disponibilidade do sistema penitenciário, com observância às regras do art. 34 do CP.  
Incabível a substituição por pena restritiva de direitos por conta da culpabilidade, hábil a indicar que a substituição não seria suficiente (CP, art. 44, inciso III).
Inviável o sursis em virtude de que a culpabilidade não é autorizadora da concessão do benefício (CP, art. 77, inciso II).
Fixo o valor unitário do dia-multa em um trigésimo do valor do salário mínimo vigente ao tempo do fato, ante a condição econômica do sentenciado.
Resumo da sentença:
A denúncia foi julgada procedente. O acusado XXXX foi condenado como incurso nas sanções do artigo 33, caput e § 4º, da Lei nº 11.343/2006. Deverá cumprir a pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de reclusão e 275 (duzentos e setenta e cinco) dias-multa. O regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade é o semiaberto. A pena de multa foi fixada na proporção mínima.
Disposições finais:
(a) Tendo em vista que a prisão foi mantida durante o curso processual e considerando que a segregação se afigura necessária por garantia da ordem pública (CPP, art. 312), diante da gravidade concreta do crime (em razão da qualidade e da grande quantidade de droga), a prisão cautelar deve ser mantida (CPP, art. 387, parágrafo único), de modo que o sentenciado não poderá apelar em liberdade. 
(b) Nos termos do art. 804 do CPP condeno o acusado ao pagamento das custas processuais, calculadas ex lege.
(c) Por ser vítima a coletividade deixo de fixar valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração (CPP, art. 387, inciso IV). Não desconheço a existência de posicionamento no sentido de que o Estado poderia ser destinatário da indenização, entretanto, reputo que a reparação pecuniária ao Estado já ocorre através da previsão legal da multa.
(d) Incide no caso o efeito genérico da condenação contido no inciso I do art. 91 do CP, não incidindo quaisquer dos específicos (CP, art. 92).
(e) Por ora deixo de determinar a perda dos bens apreendidos em favor da União, sem prejuízo da ulterior aplicação do disposto no artigo 123 do CPP, bem como da utilização do dinheiro apreendido (fl. 30) para a solvência da pena de multa.
(f) Em atenção ao art. 15, inciso III, da Constituição da República declaro a suspensão dos direitos políticos do sentenciado.
(g) Considerando que eventual recurso sobre a sentença condenatória não terá efeito suspensivo, em atenção à Resolução nº 19 do Conselho Nacional de Justiça, havendo apelação, expeça-se guia de recolhimento provisório.
(h) Em observância ao item 22, “d”, do Capítulo V das Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, e com a qualificação completa do sentenciado, comunique-se o desfecho da ação penal ao serviço distribuidor e ao Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD).
(i) Por decorrência do art. 58, § 1º, da Lei nº 11.343/2006, não tendo havido controvérsia no curso do processo sobre a natureza ou quantidade da substância, nem sobre a regularidade do laudo técnico, determino que seja procedida a destruição, por meio de incineração, do entorpecente apreendido (art. 32, § 1º), que deverá ser executada pela autoridade de polícia judiciária, na forma do art. 32, § 2º, da Lei nº 11.343/2006. Em havendo interposição de recurso sobre a decisão, fica mantida a determinação de incineração do entorpecente, hipótese em que, não obstante, deverá ser preservada a quantidade suficiente a eventual contraprova.
(j) Após o trânsito em julgado: (j.1) lance-se o nome do condenado no rol dos culpados (CPP, art. 393, inciso II); (j.2) oficie-se ao juízo eleitoral do local do domicílio do sentenciado comunicando a suspensão dos direitos políticos; (j.3) lance-se o cálculo das custas processuais; e (j.4) expeça-se a definitiva guia de recolhimento para execução da pena.
A detração penal será apreciada na fase de execução, na forma do art. 66, inciso III, alínea “c”, primeira figura, da LEP.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpra-se.
Pariquera-Açu, autodata.

AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

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