3 de julho de 2011

Carlota Joaquina e Gonçalves Dias


1ª Vara Judicial da Comarca de Registro
Autos nº 060/2010
Autor:                      Ministério Público do Estado de São Paulo
Denunciado:            K

Vistos, etc.
1. O Ministério Público do Estado de São Paulo denunciou K como incurso nas sanções do artigo 217-A do Código Penal em continuidade delitiva (CP, artigo 71). Segundo a descrição fática o acusado desde 2007 tem praticado “vários atos libidinosos diversos da conjunção carnal” consistentes em “beijos lascivos, abraços e carícias” com X (menor de 14 anos de idade).
Representou-se, ainda, pela prisão preventiva.    
É o relatório. Decido.
2. Com o devido respeito aos entendimentos contrários, entendo que a denúncia deve ser rejeitada por dois motivos.
O primeiro, estritamente formal, ao passo que a denúncia não descreve adequadamente em que consistiria o caráter libidinoso (depravado, devasso) das condutas, limitando-se a afirmar serem “beijos lascivos, abraços e carícias”. Por si sós “abraços e carícias” não são atos licenciosos, salvo quando inseridos em conotação sexual; mas tal conotação sexual não consta da narrativa. “Beijos lascivos” também não passam de “beijos” quando não indicada em que consistiria sua lascividade sexual. Mais: divergindo do caráter libidinoso, a própria denúncia aponta que vítima e denunciado narraram que seus beijos, abraços e carícias não consistiam em “envolvimento sexual”. Nesse passo, tenho que o fato, tal como narrado, não se amolda objetivamente ao preceito penal primário contido no artigo 217-A do Código Penal.
O segundo é de cunho material. Veja-se: Já no boletim de ocorrência a notícia apresentada pelo Conselho Tutelar traz a informação de que em conversa com a vítima ela afirmou “que não aconteceu nada entre os dois” (fl. 5). Os laudos de exames de atos libidinosos (fl. 7) e de conjunção carnal (fl. 8) concluíram pela inexistência de vestígios a respeito de atos libidinosos e pela ausência de conjunção carnal. O relatório de investigação (fls. 9-10) apresenta novamente as versões da menor e do acusado, ambos asseverando a inexistência de relações sexuais. Houve a exibição e apreensão de cartas românticas escritas pela menor e dirigidas ao denunciado (fls. 11-13). A própria vítima quando ouvida diretamente pela autoridade policial contou manter relacionamento com o acusado e que “ficam”, ou seja, “apenas se beijam”, sendo que nunca mantiveram relação sexual, que ele nunca tirou as roupas da menor e que também nunca ficou nu na frente dela (fl. 15). A avó da menor contou sobre o relacionamento entre os dois, noticiando que ele “assumiu ser apaixonado por sua neta desde os oito anos de idade” e que “sua neta também afirma gostar dele” (fl. 16). K, quando interrogado, contou a existência de namoro entre eles e que as carícias trocadas eram beijos, não havendo relação sexual; afirmou, ainda, que em momento algum chegou a acariciar as partes íntimas dela e que ela disse que “estava gostando” dele (fl. 17). O Conselheiro Tutelar informou que em conversa com ela, “esta revelou que havia ido na casa do acusado por conta própria e que não havia sido abusada sexualmente pelo acusado” (fl. 21). Essas são as provas indiciárias que se relacionam diretamente à denúncia, pois o documento de fl. 24 se refere a outros crimes de ameaça e versa notícia anônima cujas assertivas não encontram respaldo neste feito, eis que embora relate que “a vítima é perseguida e ameaçada de morte todos os dias pelo suspeito em qualquer lugar que esteja”, nenhuma das pessoas ao serem ouvidas perante a autoridade policial, inclusive a suposta vítima e sua avó, disseram ocorrer tal sorte de ameaças.
Como se nota, de nenhum elemento coligido na fase inquisitorial emerge conotação sexual na conduta do acusado para com a vítima. Pelo contrário, todos narram que os envolvidos negam o envolvimento sexual. O que há e que aparenta ser consenso é a existência de um romance (sem conotação sexual) entre o acusado e a menor. E o Livro dos livros já trazia a lição de que o amor “não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal” (Coríntios XIII, versículo 5).
Falece, portanto, justa causa à persecução penal.
Embora nos dias de hoje e na cultura brasileira seja moralmente reprovável o relacionamento amoroso com menores (o que nem sempre ocorreu na história próxima, bastando rememorar que Dona Carlota Joaquina Teresa Caetana de Bourbon e Bourbon, Imperatriz do Brasil, casou-se aos dez anos de idade, situação essa que àquele tempo era costumeira nas famílias integrantes da nobreza), o fato não merece destaque penal quando não transborda para os ares de devassidão sexual.
Ademais, sendo a repressão penal (com sujeição à prisão) a última ratio, claramente não é essa medida adequada à espécie, pois medidas possíveis em outros ramos do direito (a exemplo de medidas protetivas do artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente ou de providências cautelares de índole civil) seriam suficientes a preservar a candura da menor em hipótese de efetiva existência de risco.
Mesmo que esses fundamentos não fossem suficientes, vale observar que, mutatis mutandis, recentemente o Superior Tribunal de Justiça passou a sinalizar entendimento no sentido de que a consensualidade pela vítima em determinadas e específicas situações apresenta o condão de afastar o caráter criminoso (até mesmo quando da ocorrência de conjunção carnal):
“Em recentes decisões da Sexta Turma (HC 88.664/GO e RESP 403.615/MG), restou 
afirmado que a violência presumida prevista no núcleo do art. 224, ‘a’, do Código 
Penal, deve ser relativizada conforme a situação do caso concreto, cedendo espaço, 
portanto, a situações da vida das pessoas que afastam a existência da violência do
ato consensual quando decorrente de relação afetivo-sexual. No caso dos autos, 
restou firmado pela prova colhida na instância ordinária que a menor tinha o 
Recorrente como um caso amoroso, cujo desenvolvimento fazia questão de deixar 
claro a amigas próximas que a indagavam sobre o fato. Inexistindo, portanto, a 
prova de que os fatos derivaram de violência por parte do réu, mas se desenrolaram 
ao longo do tempo para uma relação amorosa, inclusive permeada depois por 
reiteradas relações sexuais, é de se afastar a violência presumida e permitir a 
absolvição do acusado” (STJ, REsp 804999/SC, rel. Ministra Maria Thereza de Assis 
Moura, DJe 1.2.2010).
Essa compreensão pode ser transportada para o caso dos autos, pois a vítima deixou claro para sua avó, para o conselheiro tutelar e para o ilustre delegado de polícia civil que mantém romance com o acusado e que gosta dele.
Ainda mais reveladoras são as expressões por ela utilizadas em suas cartas ao denunciado (uma delas recheada de beijos com batom e outra com corações desenhados). Por exemplo:
“Para estar junto não é preciso estar perto, e sim do lado de dentro”, “eu gosto muito de você”, “gostaria muito de ter você pra mim mas temos que esperar eu crescer mais um pouco”, “fique sabendo que eu te amo muito no fundo do meu coração”, “guarde esta carta para se lembrar de mim”, “sei que você me ama”, “eu te amo e te adoro muito, muito” (fl. 12).
E “amo você”, “não quero que vá embora porque eu vou sofrer muito”, “te adoro e te quero”, “você foi a primeira pessoa que marcou a minha vida”, “te amo no fundo do meu coração” (fl. 13).  
Em remate: pelo tempo de relacionamento que vinham mantendo o denunciado e a menor sem ceder de fato a eventuais impulsos sexuais, é plausível inferir que não se trata de relação com conotação libidinosa, mas de romance. Com a sensibilidade dos artistas, Gonçalves Dias em sua poesia intitulada “se se morre de amor!” escreveu estrofe que melhor traduz sentimentos em palavras:     
“Amar, e não saber, não ter coragem
Para dizer que amor que em nós sentimos;
Temer qu'olhos profanos nos devassem
O templo, onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros
Inesgotáveis, d'ilusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora,
Compr'ender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!”
E se assim o for, ambos já experimentam sofrimento por vivenciar romance moralmente proibido, não sendo razoável que o Estado-juiz atue apenas para agravar severamente a angústia, lançando o denunciado à prisão, onde estará sujeito a toda sorte de moléstias, notadamente sexuais, ante a modalidade de crime imputado.
3. Diante do exposto, e com fundamento no art. 395, incisos I e III, do Código de Processo Penal, REJEITO a denúncia.
Resta, pois, prejudicada a pretensão de prisão preventiva.
Sem imposição de condenação em custas.
Em observância ao item 22, “d”, do Capítulo V das Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, e com a qualificação completa do indiciado, comunique-se o desfecho do feito ao serviço distribuidor e ao Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD).
Embora anônima e sem respaldo fático nos depoimentos coligidos a estes autos, defiro o item V da promoção ministerial retro. Assim, extraiam-se cópias integrais dos presentes autos, a serem remetidas para instauração de inquérito policial com o fito de apuração do crime de ameaça.
Após o trânsito em julgado, arquive-se.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpram-se as Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo.
Registro, data.
AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

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