25 de julho de 2011

Sobrevivência digna e bens de primeira necessidade para crianças



Autos n. 496/2010 da 3a Vara Judicial da Comarca de Registro

Vistos, etc. 1. Relatório: L ajuizou contra V os pedidos de reconhecimento e dissolução de união estável, guarda e partilha de bens (fls. 2-4). Houve contrariedade argumentando-se que quanto à partilha os bens deveriam ser divididos na proporção de metade para cada um (fls. 21-23). Na presente audiência as partes alcançaram conciliação quanto ao reconhecimento e dissolução da união estável, à guarda e ao direito de visitas. É o relatório decido. 2. Fundamentação: Remanesce a necessidade de prestação jurisdicional exclusivamente em relação à partilha de bens. E, nesse aspecto, o caso comporta julgamento antecipado, pois os elementos já carreados aos autos são suficientes à formação da convicção jurisdicional, não havendo necessidade de produção de prova em audiência (CPC, art. 330, inciso I). Ambas as partes reconhecem que os bens são produto de esforço comum, o que implicaria na divisão deles na proporção de metade para cada um. Todavia, no presente feito existe um importante ingrediente que não pode deixar de ser considerado: o de que os bens móveis estão sendo utilizados não apenas pela autora, como pelos filhos do ex-casal, os quais possuem tenra idade. E os bens que compõe esse acervo patrimonial (armário de cozinha, microondas, geladeira, fogão, 2 botijões de gás, tanquinho, guarda-roupa, cama de casal, cama de solteiro, televisão 14 polegadas e aparelho de DVD) não são supérfluos ou suntuosos. Cuidam-se de bens essenciais à sobrevivência em mínimas circunstâncias de dignidade. A divisão deles não é razoável, pois teria por condão lançar as crianças em uma situação de extrema miséria, desconforto e indignidade. Assim, a solução do caso, e que consiste na atribuição dos bens à autora (para que deles desfrute com os filhos), encontra amparo em fundamentos de proteção da infância e da juventude. Com efeito, quando se está em foco discussão judicial que envolve interesses de crianças e adolescentes, além da observância da legislação civil é também necessária extrema atenção aos postulados constitucionais e do Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabelecem diretrizes para o respeito da especial condição dessas pessoas em desenvolvimento. Longe vai o tempo em que as crianças eram consideradas meros objetos de intervenção do Estado ou de livre disposição dos pais. Nos dias de hoje, crianças e adolescente são cidadãos de primeira categoria, sendo que o artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente lhes garante que o Estado, a família e a sociedade têm o dever de lhes oportunizar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, tudo em condições de liberdade e de dignidade. No presente caso não está em jogo o interesse meramente patrimonial, mas o próprio direito subjacente dos filhos do ex-casal em viverem e crescerem de modo digno. A separação dos pais, já naturalmente traumática por fragmentar a entidade familiar (máxime no caso, em que o clima de belicosidade entre os ex-companheiros é exacerbado), não pode ter o condão de privar os filhos, ainda crianças, de elementares condições para um desenvolvimento saudável, o que, aliás, deveria também ser preocupação do pai, o réu V. Assim, com fundamento no art. 227 da Constituição da República, e nos arts. 3º, 4º e 15 do Estatuto da Criança e do Adolescente, entendo possível que jurisdicionalmente seja amparada a manutenção dos bens com a autora. Inclusive, não há dúvidas de que assegurar à autora a permanência de bens tão básicos e que são utilizados pelos filhos observa a dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, trazido logo no art. 1º, inc. III, da CF. Dignidade é a palavra chave e consiste numa relação de respeito. É o reconhecimento de um valor inerente ao ser humano, que deve ser respeitado em todas as relações, especialmente naquelas em que há reflexos jurídicos, consistente na concepção de que as pessoas são microcosmos, seres dotados de sentimentos e emoções, observadas em sua individualidade e em sua sociabilidade. Mais: a solução encontra apoio na função social da propriedade (art. 5º, XXIII, da CF), eis que o direito à propriedade não é mais um direito absoluto que pode ser exercido de qualquer maneira. O direito à propriedade deve ser exercido de modo a observar em seu próprio conteúdo a função social. No caso dos autos, nada mais atencioso à função social que garantir à autora a manutenção em poder de bens básicos à sobrevivência dos filhos que se encontram sob sua guarda. Não está em exame estritamente a questão patrimonial. É algo muito mais amplo – o direito de uma mãe e seus filhos de poderem viver em circunstâncias mínimas de dignidade. Também o Pacto de São José da Costa Rica, incorporado ao direito interno brasileiro pelo Decreto nº 678/92, traz amparo ao direito postulado, pois é garantido o respeito à integridade psíquica (art. 5º, 1), à dignidade (art. 11, 1), à proteção da família pela sociedade e pelo Estado (art. 17, 1), sendo que todas as pessoas tem deveres para com a família (art. 32, 1), notadamente numa relação familiar e de parentesco tão próxima como a que envolve as partes. 3. Dispositivo: Diante do exposto, extinguindo o feito com resolução de mérito, julgo procedente o pedido remanescente, atribuindo à autora a propriedade integral dos bens adquiridos pelo ex-casal (armário de cozinha, microondas, geladeira, fogão, 2 botijões de gás, tanquinho, guarda-roupa, cama de casal, cama de solteiro, televisão 14 polegadas e aparelho de DVD). Sem imposição de ônus de sucumbência, dada a natureza da causa. Oportunamente, expeçam-se certidões de honorários em prol dos ilustres advogados que atuaram em função do convênio da assistência judiciária. Sentença publicada em audiência. Dou todas as partes por intimadas. Registre-se. Cumpra-se”.

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