23 de julho de 2011

Cidadania: vagas em creches


3ª Vara Judicial da Comarca de Registro
Autos nº 369/2009
Autor:                      Ministério Público do Estado de São Paulo
Réu:                         Município X
DECISÃO LIMINAR
Vistos, etc.
1. O Ministério Público do Estado de São Paulo propôs ação civil pública contra o Município X formulando pedidos de imposição de obrigação de fazer, consistente em oferecer vagas a todas as crianças constantes das listas de espera das creches municipais, e de obrigação de não fazer, referente à abstenção na criação de listas de espera (com a imediata colocação da criança solicitante em creche). Para tanto, narrou que os interesses das crianças devem gozar de prioridade absoluta, inclusive na destinação de recursos, trazendo apanhado das normas constitucionais e legais acerca do tema. Relatou, ainda, que num período de cinco anos o Município X reduziu o número de creches em atividade, culminando com uma elevação em lista de espera para 687, bem como que as medidas emergenciais a que a municipalidade havia se comprometido não foram adotadas. Pediu liminar no sentido de que o Município seja instado a providenciar, no prazo de trinta dias, locais, equipamentos e funcionários de forma provisória, para o atendimento em sistema de creches às crianças constantes das listas de espera, em local próximo à residência das crianças e sob pena de multa diária no valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais), no caso de descumprimento (fls. 1A-1P). A inicial veio instruída pelo inquérito civil nº 2/1998 (fls. 1Q-239).
Em atenção ao art. 2º da Lei nº 8.437/92, o réu foi citado e intimado para que se pronunciasse no prazo de setenta e duas horas (fl. 252), prazo esse que decorreu in albis (fl. 253).
2. No presente momento processual passo, portanto, ao exame da medida liminar, nos moldes do artigo 12 da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).
Entendo que para a concessão de liminar em ações civis públicas do âmbito da infância e da juventude basta que o direito invocado seja plausível (fumus boni iuris), pois a dimensão do provável receio de dano (periculum in mora) é dada pela própria natureza da proteção às crianças e adolescentes; é que as consequências das condutas danosas à infância e juventude, como as apontadas no presente feito, são de impossível reparação, na medida em que a ausência de amparo e adequada formação nesse especial estágio da vida perpetuarão seus efeitos ao longo de toda a trajetória das pessoas atingidas; ressalte-se, nesse aspecto, que a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional menciona expressamente a importância desta primeira etapa da educação básica, objetivando o “desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social”, devendo o ente público atuar complementando a ação da família e da comunidade; outrossim, in casu há elementos concretos suficientes a demonstrar que a desídia no adequado tratamento da questão está trazendo prejuízos concretos às crianças e suas famílias, consoante materializado nas representações e abaixo-assinados coligidos ao feito e que a proximidade com o início do ano letivo demanda pronta e urgente atuação, o que reforça a presença do periculum in mora.  
Também o fumus boni iuris está caracterizado. Veja-se:
Em regra, não incumbe à atividade jurisdicional analisar a conveniência e a oportunidade das políticas públicas. Porém, na área da infância e juventude a situação se afigura diversa, pois a própria Constituição da República Federativa do Brasil confere a dimensão da proteção, determinando a absoluta prioridade na adoção de políticas públicas voltadas a tal área, especialmente no que toca ao ensino (CRFB, arts. 227 e 211, § 2º). Por isso, não se trata de indevida interferência jurisdicional na discricionariedade do administrador público, mas de correção da falta de atendimento aos comandos constitucionais, os quais já elegeram a prioridade absoluta e, por consequência, sua intrínseca alocação prioritária de recursos.
A Constituição tem prevalência sobre qualquer outro ato, norma ou vontade política. Os direitos e garantias nela presentes devem ser concretamente assegurados pelo Poder Judiciário. Todas as lesões ou ameaças a direitos são passíveis de apreciação pelo Poder Judiciário. É o princípio constitucional da inafastabilidade, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição. A missão institucional do Poder Judiciário caracteriza suas funções típicas como a preservação da Constituição Federal e o exercício da jurisdição, que nada mais é do que a solução dos casos concretos, fazendo-se valer o ordenamento jurídico. E é por isso que a omissão no desempenho adequado e satisfatório de políticas públicas voltadas à educação infantil pode e deve ser apreciada como forma de lesão a direito, cabendo ao exercício jurisdicional a aplicação de solução ao caso concreto. Possível, portanto, a atuação jurisdicional positiva. A esse respeito: TJSP, AI 1747830800, rel. Maria Olívia Alves, j. 5.10.2009.
Nesse passo, estando demonstrado que 687 crianças estão sem atendimento pelo Município e em fila de espera, ao que se acresce a aparente desídia dos responsáveis pela realização das políticas públicas frente à questão (tanto que o réu sequer se ocupou em apresentar manifestação na oportunidade do art. 2º da Lei nº 8.437/92), presente o fumus boni iuris, pois “o direito de ingresso e permanência de crianças com até seis anos em creches e pré-escolas encontra respaldo no art. 208 da Constituição Federal. Por seu turno, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em seu art. 11, V, bem como o ECA, em seu art. 54, IV, atribui ao Ente Público o dever de assegurar o atendimento de crianças de zero a seis anos de idade em creches e pré-escolas” (STJ, REsp 474.361/SP, rel. Min. Herman Benjamin, DJe 21.8.2009). No mesmo sentido, ainda: TJSP, AC 4185175000, rel. Antonio Carlos Malheiros, j. 10.11.2009.
Com efeito, é cediço que os entes públicos têm o dever de fornecer gratuitamente vagas em creche e pré-escola. A Lei nº 9.394/96, que é Lei de Diretrizes e Bases da Educação, prevê a responsabilidade do ente público pela oferta de vagas em creche e pré-escola, gratuitamente, por serem etapas imprescindíveis à educação das crianças, sob pena de ser-lhe imputado crime de responsabilidade. O Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 54, também atribui ao Estado [aqui considerado como todos os entes que se destinam à consecução dos interesses públicos] o dever de “assegurar à criança e ao adolescente (...) atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade”. Ou seja, é patente a responsabilidade do Município. Daí a necessidade da célere inserção das crianças em instituições de ensino infantil.
Como observou Ives Gandra da Silva Martins, "o ser humano é a única razão do Estado. O Estado está conformado para servi-lo, como instrumento por ele criado com tal finalidade. Nenhuma construção artificial, todavia, pode prevalecer sobre os seus inalienáveis direitos e liberdades, posto que o Estado é um meio de realização do ser humano e não um fim em si mesmo" (Caderno de Direito Natural - Lei Positiva e Lei Natural. n. 1, Centro de Estudos Jurídicos do Pará, 1985, p. 27).
Há que se observar que “situações de urgência legitimam medidas urgentes, sem os entraves dos arts. 167, incisos I, II, III e seu par. 1º, e 37, inciso XXL da Constituição Federal, arts. 41 e 42 da Lei 4.320/64, arts. 15 e 17 da Lei Complementar n° 101/00, arts. 3° e 21 e seguintes da Lei 8.666/93, art. 2º da Lei 10.028/00, art. 10, inciso XI, da Lei 8.429/92 e art. 5º, inciso II, da Constituição Federal” (TJSP, AI 7119015000, rel. Teresa Ramos Marques, excerto do corpo do acórdão, j. 28.1.2008).
Destarte, necessária a pronta atuação jurisdicional. Porém, não nos moldes em que foi postulada a liminar. Explico:
Quanto ao lapso temporal pretendido para cumprimento da medida, reputo ser deveras exíguo, demandando maior dilação.
Porém, em contrapartida à dilação do prazo para que sejam implementadas as ações, tenho por necessário que o Município formule, com brevidade, plano de atuação no desenvolvimento de políticas públicas voltadas à completa superação da deficiência que estaria pairando sobre a questão.   
Ainda, em vez de adotar a cominação de multa diária, providência que somente teria efeito concreto (exigibilidade) após o trânsito em julgado de eventual e futura sentença de procedência, sendo necessária a pronta remoção dos obstáculos à satisfação do direito das crianças em frequentar as creches, reputo mais efetiva a determinação de que, caso não cumprida adequadamente a liminar, sejam as crianças matriculadas em estabelecimentos particulares, às expensas do Município, podendo ser realizado o bloqueio de contas públicas para satisfação a tanto (em caso de descumprimento). É que as diretrizes impostas pela Constituição Federal (artigos 208 e 227) obrigam o Município a oferecer creches bem estruturadas e com número de vagas suficientes para comportar a demanda de educandos. Nesse tocante, leciona Wilson Donizeti Liberati que “dispõe o PNE que ‘a educação infantil é um direito de toda criança e uma obrigação do Estado (CF, art. 208, inciso IV). A criança não está obrigada a frequentar uma instituição de educação infantil, mas, sempre que sua família deseje ou necessite, o Poder Público tem o dever de atendê-la’; “em outras palavras: havendo demanda ou procura do serviço essencial da educação infantil (pelos pais ou responsáveis), nasce o dever do Estado em disponibilizar o referido serviço. O impedimento do acesso da criança à educação infantil em instituições públicas faz gerar a responsabilidade do administrador público, obrigado a proporcionar a concretização da educação infantil em sua área de competência” (Direito à Educação: uma Questão de Justiça. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 237). Logo, não sendo possível disponibilizar a vaga em estabelecimento público, incumbe ao Município providenciá-la em estabelecimento particular.   
3. Diante do exposto, com fundamento no art. 12 da Lei nº 7.347/85 e com esteio no poder geral de cautela decorrente do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil e do art. 461, § 5º, do Código de Processo Civil, DEFIRO em termos o pedido liminar, para os efeitos de:
(a) determinar que em 30 (trinta) dias o Município X, por sua prefeita municipal, apresente plano de atuação no desenvolvimento de políticas públicas voltadas à completa superação da deficiência que estaria pairando sobre a disponibilização de vagas nas creches municipais a toda a demanda de crianças; e
(b) impor ao Município X, por sua prefeita municipal, a obrigação de que em 90 (noventa) dias providencie locais, equipamentos e funcionários, de forma provisória, para o atendimento em sistema de creches a todas as crianças constantes das listas de espera.
Para a hipótese de descumprimento do item “b” desta decisão, determino que as crianças constantes das listas de espera sejam matriculadas em estabelecimentos particulares de ensino, às expensas do Município X, sob pena de bloqueio de contas públicas para satisfação a tanto.
Ainda, anoto que o descumprimento de quaisquer das medidas aplicadas na presente decisão será objeto de comunicação ao Ministério Público do Estado de São Paulo para fins de apuração de eventual improbidade administrativa.
4. Expeça-se mandado para intimação quanto aos termos da liminar (a ser instruído com cópia reprográfica da presente decisão).
5. Cite-se o Município X, com as advertências do art. 285 do CPC, para que, querendo e no prazo legal, ofereça resposta à demanda.  
Intimem-se. Diligências necessárias.
Ciência ao Ministério Público.
Registro, data.
AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

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