4 de julho de 2011

Casa(?)

A decisão a seguir foi proferida pelo juiz Bruno Machado Miano. Como os leitores verão nesse e em futuros posts que trarão decisões dele, elas são simplesmente incríveis. Não há palavras para defini-las. Na minha opinião, o Bruno é um dos juízes mais brilhantes que já existiu. Mesmo não o conhecendo pessoalmente, sou seu fã incondicional. Ele é autor do blog http://borderodeideias.zip.net/ e possui escritos também no blog http://www.judexquovadis.blogspot.com/




Colégio Recursal
29ª Circunscrição Judiciária
Recurso criminal nº 198/09
Processo de origem: feito nº 290/07 – JECRIM da 2ª Vara de Tupi Paulista
Recorrente: E
Recorrido: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

VOTO:
                        Divirjo do voto do MM. Juiz Relator.
               Primeiro, e diversamente do que aduz a combativa Defesa, não se configura imprópria a arma consistente em um pedaço de ferro de construção, em forma de espeto, pontiagudo, medindo 22 cm de comprimento (exame pericial juntado a fls. 20), porque referido objeto não tem outra finalidade senão a de ferir, ofender.
                        Nesse sentido é a lição de JOSÉ DUARTE, a saber:
“Aquela cujo destino natural é ofender, é realmente a arma de que trata a lei. Não assim as que só eventualmente se prestam a ofender, mas são de normal destinação, de lícita utilização doméstica, agrícola, industrial ou esportiva.” (‘Comentários à Lei das Contravenções Penais’, RJ: Forense, 1944, p. 297)
                        Da mesma forma, esclarece BENTO DE FARIA, verbis:
Arma – de modo geral, significa todo – o objeto, ou utensílio que sirva para matar, ferir ou ameaçar, seja qual for a forma ou o seu destino principal. (...). Esse sentido, porém, não é do dispositivo em apreço, que alude a – arma – considerando-a como – o instrumento destinado principal e ordinariamente a ofensa ou a defesa pessoal. (...)”” (‘Das Contravenções Penais’, RJ: Record, 1958, p. 75)
                        E, como se vê, a arma apreendida destina-se única e exclusivamente à ofensa. A par disso, o recorrente disse que dela faria uso para defesa, porque estaria sendo ameaçado no interior do estabelecimento prisional.
Entretanto, não só deixou de comprovar o alegado (art. 156, caput, CPP), como também se esquece que o correto, se ocorrentes as ameaças, seria comunicar as autoridades em cuja custódia se encontrava.
                      Rechaçados os argumentos defensivos, passo a expor os motivos da divergência.
                       O tipo penal requestado prescreve, verbis:
“Art. 19. Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade: (...)”
                   A intenção do legislador, in casu, é clara: defender, proteger, a incolumidade pública e, mais especificamente, a incolumidade de cada pessoa pertencente ao corpo social.
                        Justamente por isso, torna delitiva a ação, independentemente da ocorrência de evento naturalístico: basta portar arma, fora de casa ou de dependência desta.
                        E isso vem desde os tempos de Roma, quando já era proibido andar armado em lugar habitado (olim non licebat cum telo ambulare intra urbem) (Apud JOSÉ DUARTE, ‘Comentários à Lei das Contravenções Penais’, RJ: Forense, 1944, p. 294 e seguintes).
                        Assentada essa premissa, impende ressaltar a enorme potencialidade lesiva de quem porta arma (um pedaço de ferro de construção, em forma de espeto, pontiagudo, medindo 22 cm de comprimento) dentro de uma unidade prisional, afinal, e isso soa óbvio, boa intenção o cidadão não possui:
·       ou pretende ofender a integridade física de um ou mais detentos;
·   ou pretende lesar ou matar algum servidor público que lá dentro exerça suas funções;
·      ou busca danificar bens que não lhe pertencem, mas sim ao Estado;
·    ou tenta se impor, mediante ameaças, junto aos demais presos, inaugurando algum grupo paralelo ao Estado.
E, ainda que o instrumento sirva apenas de elemento de dissuasão, trata-se de má conduta, a desautorizar a única autoridade legítima que deve intervir nos estabelecimentos prisionais, qual seja: a autoridade do Estado.
                        Nota-se, pois, que a conduta do recorrente ofende o bem jurídico protegido. Repise-se, com os comentários de JOSÉ DUARTE, verbis:
“(...) A lei preventiva que é, não pune o uso da arma, nem avalia o seu perigo pelas circunstâncias eventuais do porte, mas reprime o fato de trazê-la consigo, sem licença e fora de casa. É uma transgressão objetiva. Não cogita a lei do resultado, nem se atém ao subjetivismo, indagando da possibilidade de determinados indivíduos poderem usá-la eficazmente.” ( Ob. cit., p. 298)
Assim, concessa venia, não se me afigura cabível dilargar o conceito jurídico de casa, de modo a abranger local em que se potencializará o perigo que o Estado visa a combater.
PRIMEIRO, porque antes da interpretação sistemática é preciso atentar para a interpretação teleológica, a fim de não confundir definições postas em outros dispositivos legais, importando-os em dissonância com o espírito da específica lei.
Ressalte-se: o mundo das contravenções penais constitui autônomo sistema jurídico – e fechado: não por acaso, rege-se por normas mui específicas com relação às penas (quantidade, qualidade e limite), à possibilidade de tentativa, e à forma de verificação da reincidência.
SEGUNDO: o conceito de casa, referido no art. 150, § 4º, do CP, é ampliado em favor do cidadão, possível vítima de arroubos de outros particulares e mesmo do Estado.
E, acima disso, compreende locais em que o cidadão se encontra voluntariamente.
Não é possível, portanto, transpor tal conceito, estendendo-o ainda mais, a fim de abranger também as unidades prisionais; afinal, nenhum dos sentenciados fixa sua residência ali, naquele local, voluntariamente.
Os conceitos de casa e residência, é bom lembrar, envolvem voluntariedade – diversamente do domicílio, que pode ser imposto pela lei, mesmo quando em desconformidade com os locais onde o indivíduo estabelece sua casa (onde, efetivamente, reside).
Tenho que a penitenciária pode ser considerada o domicílio do recorrente; mas sua casa, efetivamente, é outra, e para ela voltará quando deixar de cumprir sua pena em regime fechado.
TERCEIRO: uma extensão assim procedida não apenas desconsidera a razão da norma em comento como também, a um só tempo, cria problemas imediatos: se a cela é mesmo a casa do preso, então as revistas nela ocorridas são todas ilegais, porque dependem de autorização judicial (ressalvada a hipótese do art. 5º, XI, da CF).
Da mesma forma, indevida seria toda e qualquer regulamentação do espaço interno das celas, sem o assentimento dos que nelas se encontram. Pior: ninguém poderia ser revistado para visitar os reclusos, porque nas casas se pode receber visitas, sem que essas sejam submetidas a buscas pessoais. E tampouco seria cabível transferir um preso de uma cela a outra, sem sua concordância.
Se tudo isso é possível deve-se ao fato do preso não estar em sua casa. Está PRESO, em local PÚBLICO, pertencente ao ESTADO e submetido a este último.
E mais: está com sua liberdade de locomoção privada, legitimamente restringida, não sendo demais lembrar, sempre, que a inviolabilidade da casa prende-se a quem pode dispor do direito de ficar, de permanecer.
Comentando o art. 153, § 10, da Constituição da República de 1967, afirma PONTES DE MIRANDA, depois de reflexiva digressão histórica do princípio:
“Dessarte, a inviolabilidade do domicílio é apenas especialização do direito de ficar – parte, por sua vez, da liberdade física. Quem habita, quem mora, demora, fica; e fica dentro de certo espaço. (...)
(...)
A proteção do espaço indispensável não é estranha à técnica constitucional: nas limitações à liberdade física, o Estado limita ou proíbe passagens por certos caminhos ou entradas em certas zonas ou edifícios. O ‘ficar’ está, portanto, a cada momento, associado a espaço. O ‘ir’ e ‘vir’, menos freqüentemente.
(...)
A inviolabilidade da casa é apenas caso particular de liberdade física.” (‘Comentários à Constituição de 1967 com a emenda nº 1 de 1969’, tomo V, SP: RT, 2ª ed., 2ª tiragem, 1974, p. 182/183)
                        E, maxima venia, liberdade física de que não dispõe o indivíduo legalmente recolhido à cela.
QUARTO: uma interpretação assim, tão extensiva, além de violar a ratio legis e criar tais problemas, desconsidera o mundo que nos cerca: todos sabemos que o preso não se restringe à determinada cela; ao revés, há espaços comuns como os raios, os pátios, os refeitórios. As próprias celas permanecem abertas, trancado apenas o raio.
A cela mais se assemelha, pois, a um quarto. Mas quarto de local público, pertencente ao Estado, e dentro do qual há contato direto com centenas de outras pessoas. Num espaço assim, indispensável a regulação – inclusive do Direito Penal.
Afirmar o contrário seria fazer das celas espaço de ninguém, isso sim. E também assim os quartos de hospitais, as escolas e as creches.
Ora, ninguém mora numa cadeia, numa penitenciária, numa cela. Nem é desejável que isso ocorra, razão pela qual o tempo de permanência da pessoa vem limitado, pela própria lei.
FINALMENTE, soaria incongruente sancionar a conduta de um cidadão que porta arma branca fora de sua casa, independentemente de sua intenção (boa ou má), e, ao mesmo tempo, deixar de punir o cidadão que não está bem intencionado – como ocorre com aqueles que portam armas no interior de unidades prisionais.
                        Posto isso, rechaço a tese da atipicidade de referida conduta.
                        No mais, a condenação era mesmo de rigor: trata-se de réu confesso (fls. 86), havendo ainda os testemunhos de dois agentes da Lei, que encontraram referida arma (fls. 83 e 84).
A pena, como sói de ser, foi sabiamente fixada pelo MM. Juiz a quo, contra ela não se irresignando a n. Defesa.
Por todo o exposto: CONHEÇO DO RECURSO INTERPOSTO, MAS NEGO-LHE PROVIMENTO.
É como voto.
Bruno Machado Miano
Juiz Relator

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