18 de julho de 2011

Reflexo fidedigno


2ª Vara - Ofício Cível da Comarca de Dracena
Autos n.º 168.01.2009.007869-0/000000-000
994/09

SENTENÇA:


‘Que vai ser quando crescer? Vivem perguntando em redor. Que é ser? É ter um corpo, um jeito, um nome? Tenho os três. E sou? Tenho de mudar quando crescer?
Usar outro nome, corpo e jeito? (..)’

(trecho de VERBO SER, de Carlos Drummond de Andrade,
Boitempo, Poesia Completa, vol. único, Nova Aguilar, p. 1.015)

F. ajuizou esta causa pretendendo, em síntese, a retificação de seu assento de nascimento, para corrigir seu nome e seu sexo, adequando-os à realidade.
Afirma o autor que, apesar de ter nascido como do sexo masculino, inclusive dispondo de órgãos masculinos, nunca se portou como tal, tanto assim que desde pequeno manifestava instintos e possuía hormônios femininos.
Logo aos dez anos de idade, constatou que nada tinha com seu sexo biológico, porque era afeminado, sempre agiu como se fosse do sexo feminino, tinha atitudes de menina, vestia-se como menina e sentia atração por pessoas do sexo masculino.
Em 10 de junho de 2009, na Tailândia, realizou a cirurgia que adequou seu corpo ao seu estado psicológico, retificando-lhe o sexo com a amputação do pênis. Ficou, ainda, com as características secundárias de mulher.
Os procedimentos a que se submeteu o requerente (orquiectomia, clitoroplastia, vaginoplastia e labioplastia) são utilizados para  operação de mudança de sexo, aprovada oficialmente pelo Conselho Federal de Medicina do Brasil, inclusive recomendando que o SUS os ofereça na rede pública.
Agora, possuindo o corpo conforme à sua realidade interior, pretende evitar constrangimentos à sua pessoa, surgidos com a manutenção do assento civil de nascimento. Para tanto, pretende alterar seu nome para G.
Invoca precedentes jurisprudenciais, lições doutrinárias e preceitos legais. Dá à causa o valor de mil reais (fls. 2/11). Com a inicial, trouxe os documentos de fls. 12/32.
Deferida a gratuidade judiciária à autora (fls. 56) e, a seguir, sua avaliação psicológica (fls. 58), cujo laudo vem encartado a fls. 69/74.
O Ministério Público, em parecer, invocando o princípio constitucional da dignidade humana, opinou pela alteração do nome e do gênero do autor em seus assentos civis, requerendo, apenas, a averbação no registro sobre a mudança ocorrida (fls. 77/92).
É o relatório.
Fundamento e decido:
Procede a retificação postulada.
Como sabido, os atos de registro público devem espelhar a realidade do mundo fenomênico: nem mais, nem menos.
E pelo que avulta dos autos, de modo farto e inconteste, F nunca existiu, tal como constante em seu assento de nascimento.
Sua gênese, sua formação psíquica, seus modos, seus desejos e sua vontade traíram a superficial aparência e, depois, mostraram de forma cabal que o menino, em verdade, era ela.
Isso porque, conforme os prognósticos médicos existentes nos autos (fls. 23/24 e 26/32), aliados ao laudo psicológico (fls. 69/74), verifica-se que F é um transexual.
E aqui, válida, muito válida, a citação do ensinamento de ANTÔNIO CHAVES, a saber:
“O transexual acredita insofismavelmente pertencer ao sexo contrário à sua anatomia e por isso se traveste. Para ele, a operação de mudança de sexo é uma obstinação. Em momento algum vive, comporta-se ou age como homem. Quando o faz é sob condições estressantes que podem conduzi-lo a conseqüências neuróticas e até psicóticas. Estas podem chegar ao ponto de induzi-lo à automutilação da própria genitália e, em certos casos, ao suicídio.” (Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transexualidade, transplantes. 2 ed. SP: RT, 1994, p. 140)
Não se trata, frise-se, de anomalia ou transtorno sexual.
O fato é mais simples: revela a individualidade do Ser Humano, não aprisionado em convenções sociais e heterônomas. Demonstra, amiúde, as particularidades de quem pertence à nossa espécie, e que merece reconhecimento pelo que de fato É, e não pelo que APARENTA SER.
Preto, branco, amarelo, vermelho ou pardo. Cristão, muçulmano, judeu ou ateu. Hétero, homo, bi ou trans.
Não importa o rótulo: ensina desde tempos pretéritos a velha Arte do Bom e do Justo que é direito de cada qual pautar-se conforme a própria consciência, tendo em mira, no diálogo social, dois imorredouros princípios:
ALTERUM NON LAEDERE
e
SUUM CUIQUE TRIBUERE
É dizer: não prejudicar a ninguém e dar a cada um o que é seu.
A autora não pede nada demais. Prova que já era, psicologicamente, uma mulher (fls. 24 e laudo a fls.69/74), e demonstra que, doravante, possui corpo, aparência e órgãos femininos (fls. 26/32, em especial para as minúcias do procedimento, constantes a fls. 31). Traz ainda suas fotos, a demonstrar não só feminilidade, como também, com todo o respeito, graça e beleza (fls. 21 e 22).
Demais disso, demonstra não tencionar ocultar problemas em nome do nunca existente F (certidões a fls. 33/34). Revela seus problemas e percalços, que lhe agridem a honra, a imagem, a alma... enfim, a personalidade, que, na atual dogmática constitucional, assume o nome de dignidade (depoimento pessoal e relatório psicossocial).
Aliás, nesse ponto, detenho-me para lembrar que, inserido no conceito de personalidade está, também, o status sexual do indivíduo, o qual não se resume a suas características biológicas, mas também a desejos, vontades e representações psíquicas, que nem sempre convergem para o padrão social convencionado à época em que ele vive.
Claro está, portanto, que F, como homem, nunca existiu. Se pessoa foi, foi bem na acepção que o termo latino lhe empresta, de persona, tal qual máscara: porque outra coisa não fez o nome brasileiro até aqui senão mascarar a realidade, ocultar a pessoa, aprisionar a cidadã e agrilhoar a dignidade de G.
A pretensão, portanto, não prejudica a ninguém. E a autora pede aquilo que lhe é de direito: o resgate à sua individualidade, que começa pelo nome. O recobro, em suma, de sua dignidade.
E dignidade, aqui entendida em sua mais ampla acepção, com limites normativos espraiados em todo nosso arcabouço jurídico, decorrente de sua condição de fundamento constitucional.
Dignidade como:
“(...) valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto serem humanos.” (MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada. SP: Atlas, 2002, p. 129. Negritei)
Assim, conquanto a letra fria da Lei de Registros Públicos não discipline expressamente a questão dos transexuais, e tampouco tenha o Código Civil avançado no assunto, temos a Constituição Federal a amparar, como um de seus fundamentos (isto é, como alicerce em cima do qual se constrói o edifício jurídico pátrio), a pretensão daqueles que, como a autora, sofrem discriminação, preconceito e intolerância, num verdadeiro menoscabo à sua DIGNIDADE (art. 1º, III, CF).
Essa, pois, é a única forma de agir de uma sociedade que se quer fraterna, pluralista e sem preconceitos (preâmbulo da CF). Ou, como ensina Flávia Piovesan:
“A ética dos direitos humanos é a ética que vê no outro um ser merecedor de igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de desenvolver as potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena. É a ética orientada pela afirmação da dignidade e pela prevenção ao sofrimento humano.” (Igualdade, diferença e direitos humanos: perspectivas global e regional. Apud Direitos Fundamentais e Estado Constitucional. Coord.: George Salomão Leite e Ingo Wolfgang Sarlet. SP: RT, 2009, p. 295)
Também não é ilícita a pretendida inclusão do patronímico materno, como pretende a autora. Conforme se extrai dos autos, foi o amor materno aquele quem primeiro lhe acolheu, respeitou e entendeu, sem discriminar e questionar. Do pai, infelizmente, poucas notícias há. Mas é sua genealogia e precisa ser conservada.
Discordo, porém, do requerimento ministerial para que fique constando nos registros a retificação procedida, por meio de averbação. Conquanto entenda o papel do zeloso representante da Sociedade, em prol de terceiros de boa-fé, é preciso considerar que tal averbação já consistiria numa discriminação, numa diminuição da autora.
Primeiro, por não lhe respeitar o verdadeiro status sexual, desde que G nasceu. Segundo, por partir, ainda que involuntariamente [o que, aliás, tenho certeza que ocorreu, dada a retidão de caráter, a hombridade, a dignidade, o zelo e a ética com que atua o zeloso membro do Ministério Público da 2ª Promotoria desta Comarca, dr. Rufino Galindo Campos], da premissa da má-fé, como se nos eventuais relacionamentos que porventura venha a ter, não vá G agir dentro da ética e do respeito, autodeterminando-se de modo consciente e responsável. Seria não lhe ter como uma pessoa digna por inteiro. Terceiro, porque o próprio ordenamento pátrio prevê sanções a quem induzir outrem a erro quanto à sua pessoa.
Creio que a dignidade que se quer conquistar é essa: a de ser respeitada como a pessoa que sempre foi e que os documentos nunca constataram. Fazer a ressalva manteria a autora numa condição de meia dignidade, que, em termos axiológicos (de Valores), é o mesmo que nenhuma.
Nem creio que a solução da retificação pura e simples, sem referência ao estado anterior da autora, macule o princípio da continuidade registrária ou permita, no futuro, a turbatio sanguinis, afinal, os pais de G permanecerão os mesmos; a data de nascimento também e, da mesma forma, seus irmãos. O que muda, apenas, é o nome.
E nesse eventual choque de princípios (dignidade vs. boa-fé e continuidade registrária), observo a lição do Des. Rizzatto Nunes, que escreveu:
“É inexorável: no meio social, como decorrência da garantia da dignidade a todas as pessoas e tendo em vista a natural colisão de interesses e direitos, ocorrerá, no limite, o embate entre dignidades. O princípio instrumental da proporcionalidade aqui, que resolvemos intitular de segundo grau ou especial, possibilitará a solução.
O intérprete operará da seguinte maneira. No exame do caso concreto ele verificará se algum direito ou princípio está em conflito com o da dignidade e este dirigirá o caminho para a solução, uma vez que a prevalência se dá pela dignidade. A proporcionalidade aí comparece para auxiliar na resolução, mas sempre guiada pela luz da dignidade. (...)
Visto isso, e para concluir, forçoso repetir que é dever de todos, especialmente aqueles que militam no campo jurídico – advogados, promotores de Justiça, juízes, professores de Direito etc. -, pautar sua conduta e decisões pela necessária implementação real do respeito à dignidade da pessoa humana, princípio absoluto!”. (O princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: doutrina e jurisprudência. SP: Saraiva, 2007, p. 56/57)
Nesses termos, com espeque no art. 1º, II e III da Constituição Federal Brasileira e, ainda, nos artigos 54, 57 e 109 da Lei nº 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos, LRP), interpretados sob a luz daqueles constitucionais fundamentos, JULGO PROCEDENTE o pedido deduzido na inicial para, de vez por todas, determinar a retificação do registro de nascimento (lavrado sob nº XXXX, livro A-XXXX, folhas XXXX, do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais de Dracena) de F, alterando seu nome para G, constando seu sexo como feminino, de modo a espelhar, fidedignamente, a realidade existente. Expeça-se mandado de retificação ao Cartório de Registro Civil de Dracena, não devendo constar, no referido registro, as alterações ora determinadas.
Transitada esta em julgado e cumprida a decisão, arquivem-se os autos. No mais, extingo o presente feito com fundamento no art. 269, I, do Código de Processo Civil. Custas pela autora, que é beneficiária da gratuidade judiciária.
Ciência ao Ministério Público.
P. R. I. C.
Dracena, 06 de maio de 2010
Bruno Machado Miano
Juiz de Direito
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário