11 de julho de 2011

Caso cinematográfico


Vara Judicial da Comarca de Cananéia
Autos nº 146/2004
Autor:                      Ministério Público do Estado de São Paulo
Denunciados:          X e Y

S  E  N  T  E  N  Ç  A

Vistos, etc.
1. Relatório:
O Ministério Público do Estado de São Paulo denunciou X e Y como incursos nas sanções do artigo 121, §§ 3º e 4º, do CP, por três vezes, em concurso formal de crimes (art. 70, caput, do CP), em razão de que no dia 5 de maio de 2004, agindo culposamente, teriam causado a morte de A, B e C (fls. 2-6).
A denúncia foi recebida em 5 de junho de 2007.
Sob a égide do anterior procedimento comum ordinário, ocorreu o interrogatório de X (fl. 232) e a apresentação de sua defesa prévia (fl. 236). Com a alteração legislativa, sobreveio resposta à acusação por Y (fls. 365-366).
Durante a instrução foram inquiridas onze testemunhas (fls. 279, 280, 282-283, 300-306, 379, 380, 381, 382, 383, 384 e 397-398), sendo, ao final, interrogados os réus (fls. 385 e 386).
Em alegações finais a acusação pediu a condenação de Y e a absolvição por insuficiência probatória de X (fls. 468-478).
A defesa de Y pediu preliminarmente a renovação das informações meteorológicas, porquanto as acostadas se refiram a data diversa daquela em que ocorreu o acidente. Quanto ao mérito, pediu a sua absolvição por o fato não constituir infração penal e por estar provado que não concorreu para infração (fls. 479-485).
A defesa de X se alinhou ao pedido absolutório formulado pelo parquet (fls. 488-490).
É o relatório. Decido.
2. Fundamentação:
Indefiro o pedido relacionado às informações meteorológicas formulado pela defesa de Y. Apesar da óbvia falha na resposta de fls. 438-449, a defesa teve a oportunidade de se manifestar sobre os documentos antes das alegações finais (fls. 450 e 451), quedando-se inerte, de modo que preclusa está a oportunidade de renovação da tentativa de produção da prova pretendida. Ademais, é incontroverso nos autos que na ocasião do naufrágio ocorreu um ciclone extratropical, o que, inclusive, está estampado na denúncia (fl. 3).  
Prossigo ao exame do caso.  
Está provado que: (I) o barco de pesca S pertencia a X (fls. 100-110); (II) Y exercia na ocasião a posição de mestre da embarcação (fls. 232, 280, 282-283); (III) a embarcação estava desprovida de balsa auxiliar e de coletes salva-vidas em número suficiente e equivalente ao de tripulantes (fls. 71-74, 116-124, 37-38, 232, 240-248, 280, 282-283, 300-306), sendo que a balsa auxiliar havia sido subtraída cerca de dois meses antes do acidente (fls. 37-38, 282-283 e 379); (IV) a embarcação estava em alto-mar desde 3.5.2004 (fl. 2); (V) em 5.5.2004 os efeitos de um ciclone extratropical foram sentidos na região (fl. 3); (VI) a tripulação havia recolhido as redes de pesca e a embarcação estava rumando para o abrigamento quando foi atingida por uma onda, momento em que A estava ao leme, conduzindo a embarcação (embora não fosse habilitado junto à Capitania dos Portos), sendo que a onda cobriu a casaria e virou a embarcação, lançando os tripulantes na água (fls. 37-38, 280); (VII) A, apesar de na ocasião estar exercendo a atribuição de “geleiro”, já havia antes permanecido como mestre da mesma embarcação por 12 dias (fls. 280 e 282-283); (VIII) após serem lançados na água, Y improvisou meios de flutuação (fls. 3 e 386); (IX) A, B e M permaneceram nas bóias improvisadas (fls. 37-38 e 280); (X) Y resolveu sair a nado para procurar ajuda (fls. 37-38 e 386); (XI) C resolveu nadar em acompanhamento a Y para buscar auxílio (fls. 37-38 e 386); (XII) Y nadou por cerca de 16 horas em alto-mar, até alcançar a praia de Ilha Comprida e providenciar o resgate (fls. 4 e 37-38); (XIII) C não conseguiu sobreviver à natação (fls. 37-38 e 279); (XIV) A e B faleceram por afogamento quando estavam à deriva e flutuando sobre as bóias improvisadas (fls. 219, 280 e 282-283); (XV) foram efetuadas buscas para localização dos tripulantes (fls. 5, 96, 97, 98); (XVI) Y participou ativamente das buscas e em razão de seu conhecimento sobre as marés foi possível realizar o resgate de M, o que ocorreu 43 horas depois do acidente e a uma distância de 45 milhas do local do naufrágio (fls. 4 e 37-38).
Desse modo as condutas culposas consistiriam na ausência de equipamentos de segurança, na desatenção ao alerta de abrigamento e em ter sido permitido que pessoa não habilitada estivesse na condução da embarcação no momento do naufrágio.
Como bem observado pelas partes, quanto à proprietária do barco, X, a solução absolutória é de rigor, porquanto presente dúvida razoável (art. 386, inciso VII, do CPP) de que houvesse chancelado que a embarcação estivesse navegando naquela ocasião sem os equipamentos de segurança (o que se infere a partir das provas coligidas às fls. 232, 281, 379, 380, 381, 382, 383, 384, 385 e 386).   
Todavia, não obstante às excelentes ponderações tecidas pela ilustre promotora de justiça em suas alegações finais, com a devida vênia, entendo que o caso também reclama a absolvição de Y.
Não há certeza em patamar suficiente à condenação de que Y houvesse desconsiderado alerta de abrigamento antes de embarcar. O barco partiu para alto-mar no dia 3.5.2004, quando o tempo não estava ruim, enquanto que o acidente somente aconteceu no dia 5.5.2004, ou seja, quando a navegação já se encontrava no terceiro dia. Só o que se tem como certo é de que no dia 5.5.2004 o alerta de abrigamento foi efetivamente levado a conhecimento de Y, ocasião em que foram providenciados os recolhimentos das redes de pesca e passou-se a navegar rumo ao abrigo, tanto que o naufrágio ocorreu durante o trajeto que tinha o abrigo por destino. Nesse aspecto, então, não se pode reputar que tenha havido displicência.
Porém, Y agiu de modo culposo ao navegar sem equipamentos de segurança e ao entregar a condução da embarcação para pessoa não habilitada. Essa conduta culposa, apesar de caracterizada, não tem o condão de autorizar a responsabilização pelos resultados (morte de três tripulantes). Aqui, o ponto em que se assenta a absolvição é a relação de causalidade.   
É cediço que o Código Penal em seu art. 13 adotou quanto à relação de causalidade (elo de ligação entre a conduta e o resultado naturalístico) a teoria da conditio sine qua non (equivalência dos antecedentes), segundo a qual toda e qualquer causa que tenha contribuído para o resultado, ainda que mínima ou ínfima, ingressa na cadeia de causalidade. Ocorre que a interpretação desavisada da regra poderia conduzir a uma responsabilização tendente ao infinito, de modo a se punir, por exemplo, uma pessoa que participou da extração de minério de ferro ciente de que aquele metal seria utilizado na fabricação de uma arma e que essa arma poderia ser usada para matar alguém.
Daí que para limitá-la se passou a empregar a teoria da imputação objetiva, acrescentando que para a responsabilização criminal deve estar presente também um elemento normativo, de modo que para a existência do nexo causal é necessário que o agente tenha criado ou incrementado um risco proibido relevante e que exista conexão direta entre esse risco e o resultado
No presente caso, sabe-se que Y criou duas situações de risco, por haver navegado sem os equipamentos de segurança e por ter repassado a condução para pessoa não habilitada junto à Capitania dos Portos. Mas é duvidosa a conexão direta entre esses riscos e os resultados (morte dos três tripulantes).
Com efeito:
Ocorreu situação de anormalidade naquele início de maio do ano de 2004, em que um ciclone extratropical gerou grandes ondas e chuvas que atingiram a costa brasileira (litoral sul e sudeste), ocasionando desabrigamentos, desmoronamentos, inundações e naufrágios. Isso, para além de amplamente divulgado àquele tempo pela imprensa (inclusive recortes de jornal acostados aos autos), pode ser constatado mediante simples pesquisa em ferramentas de busca na rede mundial de computadores.
E não é possível definir com certeza que a tragédia teria sido evitada se fosse Y quem estivesse manejando o leme da embarcação e se os equipamentos de segurança estivessem presentes.
Há indício a esse respeito, pois Y era habilitado junto à Capitania dos Portos e desempenhava bem suas funções. Mas diante de uma situação de anormalidade, não se pode afirmar que Y teria reagido com técnica suficiente a evitar a tragédia. É deveras difícil que em situações anormais se espere ou se exija que as pessoas ajam com reflexos e reações normais.
A dúvida é reforçada pela circunstância de que A (que estava na condução naquele momento), apesar de não ser habilitado junto à Capitania dos Portos, tinha conhecimento fático sobre a função, não podendo ser reputado como inexperiente, pois até mesmo já havia atuado como mestre da mesma embarcação (fls. 282-283 e 280).
Aparentemente, a falta de habilitação junto à Capitania dos Portos decorria não da inexperiência dos tripulantes, mas da escassa atuação da Capitania dos Portos junto à comunidade de Cananéia.
Mais:
A carência econômica que assola esta região do Estado de São Paulo (o Vale do Ribeira, também conhecido como o “Vale da Fome”) faz com que as pessoas se disponham a trabalhar em condições precárias, para que assim possam ao menos tentar sobreviver licitamente, tanto que nenhum dos tripulantes se recusou a participar da viagem e o próprio sobrevivente M asseverou que nunca presenciou que encarregados (mestres de embarcação) se recusassem a navegar por falta de equipamentos (fls. 280-281).
Também não seria razoável exigir que Y permanecesse todo o tempo (integralmente) à frente da condução da embarcação, porquanto a atividade pesqueira já estivesse em seu terceiro dia de duração. E quem poderia substituí-lo na condução? Responde-se: alguém sem habilitação, pois àquela época, como também agora, eram muito poucas as pessoas que nesta região desempenhavam a atividade e que eram qualificadas por cursos da Capitania dos Portos.   
Não se pode assegurar que a existência dos equipamentos de segurança teria evitado a tragédia, porquanto sequer os coletes salva-vidas que existiam na embarcação conseguiram ser utilizados, em razão da surpresa e rapidez com que ocorreu o naufrágio.
E não é só.
C não teria morrido diretamente em função do naufrágio, mas de haver sucumbido durante a árdua natação (em alto-mar e com o oceano revolto por decorrência do ciclone extratropical) em busca de terra firme e socorro.
A e B sobrevieram por algum tempo após o naufrágio (fls. 38 e 176-177), não se podendo ter certeza de que se houvessem melhores condições públicas de segurança à navegação e de resgate pudessem ter sido salvos antes que viessem a óbito. De se ver, aliás, que somente após a tragédia (e ainda de modo provisório) o poder público instalou na região uma equipe da Defesa Civil e uma estação meteorológica móvel (fl. 12).  
Em resumo, houve uma sucessão de eventos que culminaram com a tragédia. Desde a anterior subtração da embarcação salva-vidas, passando pelas precárias condições econômicas, pela ausência de qualificação da mão-de-obra, pela ocorrência do fenômeno meteorológico e pela parca atenção conferida pelo poder público. Aparentemente, todos foram vítimas da miséria que lastimavelmente assola esta região, notadamente no que tange à atividade pesqueira.
Diante desse panorama, entendendo não estar demonstrado de modo suficiente que exista conexão direta e eficiente entre as condutas de Y e os resultados (morte de três tripulantes), reputo temerário atribuir e ele a responsabilidade criminal pelo episódio.
De todo modo, mesmo que fosse de se ter por presente o nexo de causalidade, ainda assim Y não deveria ser submetido a sanção criminal (por inteligência ao art. 121, § 5º, do CP). Ele foi bem qualificado no desempenho das funções de mestre de embarcação, sendo elogiado pelas testemunhas como “atento” (fl. 379), “um dos melhores” (fl. 381), “competente” (fl. 383) e “ótimo” (fl. 384). O naufrágio em questão foi o único em uma vida dedicada à pesca (fl. 386). Perdeu três de seus colegas de trabalho e com os quais passava dias de isolamento em alto-mar, o que, por lógico, propicia convivência íntima em patamar quase que familiar. Nadou em alto-mar e em meio a oceano revolto por cerca de 16 horas até alcançar terra firme, depois reuniu forças para providenciar ajuda e, ainda, apesar da óbvia exaustão a que devia estar submetido, foi auxiliar nas buscas e acabou sendo o responsável pela localização e salvamento do sobrevivente M, que já se encontrava debilitado e em vias de ir a óbito. Todo esse quadro, consistente na morte de pessoas próximas somado ao esforço sobre-humano que realizou para conseguir providenciar resgate (tendo êxito quanto a um de seus colegas de trabalho), revelam que as consequências do evento o atingiram de modo tão grave que a sanção penal seria desnecessária.    
3. Dispositivo:
Diante do exposto, e com fundamento no art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal, julgo improcedente a pretensão punitiva consubstanciada na denúncia para o fim de ABSOLVER os acusados X e Y.
Sem custas, em razão da absolvição.
Em observância ao item 22, “d”, do Capítulo V das Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, e com a qualificação completa dos sentenciados, comunique-se o desfecho da ação penal ao serviço distribuidor e ao Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt.
Oportunamente expeça-se certidão de honorários em prol do ilustre advogado que atuou no feito em função do convênio da assistência judiciária.
Após tudo cumprido, arquive-se.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpram-se as Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo.
Cananéia, data.
AYRTON VIDOLIN MARQUES JÚNIOR
Juiz Substituto

3 comentários:

  1. Obrigado! Depois de ter dado a sentença soube de mais um fato curioso e q confirmou o acerto da absolvição (já transitada em julgado). Um servidor do fórum me contou que o Y na verdade tinha sido internado no hospital qdo chegou em terra firme; mas qdo soube q o resgate não estava achando as outras pessoas, fugiu do hospital e pegou um barco para ir auxiliar no resgate, sendo então que ele achou e salvou o M.

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  2. Nossa! Parece filme...

    Muitas vezes levo em meus pensamentos alguns casos. Quando há o "e se..."

    É preciso ter muita cautela, sempre. Não esquecer que aquele amontoado de papel é muito mais do que trabalho a fazer. Quantas vidas passam nas mãos do MP e do Magistrado.

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