2 de julho de 2011

Cidadania: a escola e o autismo

O caso a seguir trata da colocação de um professor de apoio em sala de aula a fim de minimizar o déficit cognitivo que apresenta uma criança autista em relação aos demais alunos e foi objeto de discussão entre alguns juízes amigos.

De início entendi que não seria caso de concessão de liminar por haver um descompasso abissal entre as normas e a realidade, tornando a situação inexequivel.

Mas a seguir o meu amigo Paulo, juiz autor da decisão, relatou que leu o posicionamento de professores a respeito do tema e apesar de haver alguns que reclamavam da existência de um professor de apoio, outros tantos comentavam experiências boas e positivas que tiveram em manter cegos, autistas e outras tantas minorias em sala de aula, na rede regular de ensino.

E daí ele usou um argumento muito forte: o convívio - inclusão - não é um direito só da minoria, mas também da maioria de ter contato com o diferente. Hoje não sabemos como nos portar diante de um autista, mas se tivéssemos contato com um no colégio, talvez fosse diferente. Apesar da difícil operacionalização da decisão, vale a tentiva.

E assim ele me convenceu...  



VISTOS PARA DECISÃO

I) Trata-se de Mandado de Segurança impetrado por B e C, já adequadamente qualificados, representados por advogada igualmente habilitada, em face da Sra. DIRETORA ESTADUAL DE PRIMEIRA E SEGUNDO GRAU, também qualificada. Aduzem os impetrantes que seu filho A, portador de transtorno invasivo do desenvolvimento (autismo), encontra-se matriculado na rede regular de ensino, frequentando a 2ª série do ensino fundamental. No entanto, em vista do transtorno que lhe acomete, necessita de um “professor de apoio em sala de aula,” a fim de minimizar o déficit cognitivo que apresenta em relação aos demais alunos, o que lhe foi negado pela autoridade coatora. Asseveram que a presença de um professor capacitado para seu filho é direito assegurado em vários dispositivos legais, traduzindo-se a negativa em afronta a direito líquido e certo. Com a inicial vieram os documentos necessários.

É o breve relato.

O art. 7º, III, da Lei n. 12.016 autoriza o juiz a conceder, in limine litis, medida liminar para suspender o ato impugnado. Dois são os requisitos legais para obter-se a medida, que participa da natureza da antecipação de tutela: a) relevância da fundamentação do mandado de segurança; b) risco de ineficácia da segurança, se afinal vier a ser deferida.


Veja-se que “por relevância da fundamentação compreende-se o ‘bom direito’ do impetrante, revelado pela argumentação da inicial em torno de seu direito subjetivo lesado ou ameaçado pelo ato da autoridade coatora. É preciso, para ter-se como relevante a causa de pedir, que tal direito se apresente demonstrado, de maneira plausível, ou verossímil, no cotejo das alegações do autor com a prova documental obrigatoriamente produzida com a petição inicial” (In: O Mandado de Segurança segundo a Lei n. 12.016 de 07 de agosto de 2009. Humberto Theodoro Júnior. 1ª Edição, Forense, 2010. p. 23/24).

De outra banda, o risco de ineficácia da eventual sentença de deferimento da segurança “é aquilo que, nas tutelas de urgência, se denomina periculum in mora, ou seja, o risco de dano grave e iminente, capaz de consumar-se antes da sentença, de tal modo que esta, a seu tempo, seria despida de força ou utilidade para dar cumprimento à tutela real e efetiva de que a parte é merecedora, dentro dos moldes do devido processo legal assegurado pela Constituição” (Idem, p. 24).

Pois bem, a Carta Constitucional de 1988, em seu art. 227, dispõe ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

O Estatuto da Criança e do Adolescente repete esta assertiva constitucional, pondo em relevo a absoluta prioridade da efetivação dos direitos referentes à criança e ao adolescente, em seu art. 4º. 

Mais adiante, ao tratar do Direito à Educação, dispõe o art. 53, inciso I, do Estatuto dispõe, in verbis : “art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhe: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”.

O art. 54, inciso III, do Estatuto da Criança e do Adolescente diz que: “Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”.

Já o § 1º, do art. 58, da Lei 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional preconiza que: Haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado, na escola regular, para atender às peculiaridades da clientela de educação especial.

E, bem assim, o art. 59, incisos I e III, da referida Lei dispõe ainda, in verbis, que: “Art. 59. Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais: I - currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades; (...) III - professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns.”

Já o Decreto n. 3298/1999, regulamentador da Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispôs sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolidando as normas de proteção. E, assim preceituou em seu art. 24, §§ 1º e 4º, e art. 29, inc. II:

“Art. 24. Os órgãos e as entidades da Administração Pública Federal direta e indireta responsáveis pela educação dispensarão tratamento prioritário e adequado aos assuntos objeto deste Decreto, viabilizando, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas: § 1º Entende-se por educação especial, para os efeitos deste Decreto, a modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino para educando com necessidades educacionais especiais, entre eles o portador de deficiência. (...) § 4º A educação especial contará com equipe multiprofissional, com a adequada especialização, e adotará orientações pedagógicas individualizadas.

“Art. 29. As escolas e instituições de educação profissional oferecerão, se necessário, serviços de apoio especializado para atender às peculiaridades da pessoa portadora de deficiência, tais como: II - capacitação dos recursos humanos: professores, instrutores e profissionais especializados.”

Finalmente, a Resolução CNE/CEB nº 2, de 11 de setembro de 2001, responsável por instituir diretrizes nacionais para a educação especial na educação básica, previu em seu art. 8º, inc. IV, que: “Art. 8º. As escolas da rede regular de ensino devem prever e prover na organização de suas classes comuns: IV – serviços de apoio pedagógico especializado, realizado, nas classes comuns, mediante: a) atuação colaborativa de professor especializado em educação especial; b) atuação de professores- intérpretes das linguagens e códigos aplicáveis; c) atuação de professores e outros profissionais itinerantes intra e interinstitucionalmente; d) disponibilização de outros apoios necessários à aprendizagem, à locomoção e à comunicação.”

Desta forma, vê-se que a legislação vigente ampara e assegura os direitos das pessoas com necessidades educacionais especiais, de maneira a proporcionar a estas o acesso a uma educação de qualidade, promotora do processo de cidadania, em dignas condições.

Nesse prisma, o direito à educação não pode dizer respeito somente ao direito à vaga em instituição de ensino, mas também deve ser considerado o direito ao ingresso, à permanência e ao sucesso na vida escolar, sendo indispensável às crianças e adolescentes que apresentam necessidades especiais, a disponibilização de profissional habilitado, a fim de que seja garantido a eles os direitos previstos no sistema de proteção integral preconizado pelo ordenamento pátrio, e em especial, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.   

E, consoante se infere dos documentos aparelhados aos autos, a disponibilização de um professor de apoio ao educando A afigura-se crucial para sua inclusão pedagógica e social. O próprio relatório de fl. 17 contempla notícia de uma efetiva melhora do educando – mesmo desacompanhado de profissional apto – ao ser exposto ao convívio plúrimo, juntamente dos demais alunos. Além disso, os pareceres de fls. 23/41 indicam a viabilidade da medida.

Vale, neste particular, a transcrição da orientação contida na cartilha de Direitos das Pessoas com Autismo elaborada pela Defensoria Pública do Estado de São de Paulo em parceria com entidades do setor privado: “A principal importância [da inclusão escolar] é considerar as características de cada criança, garantindo entre crianças e adolescentes com e sem deficiência, com aprendizado do respeito e da tolerância às diferenças. Como força transformadora, a educação inclusive aponta para uma sociedade também inclusiva.”

Em resumo, ante os fartos dispositivos legais a respeito, seja em âmbito constitucional seja infra-constitucional, encontra-se atendida a relevância da fundamentação do mandado de segurança.

Respeitante ao risco de ineficácia da segurança, afigura-se tranquilo afirmar que o decurso do tempo sem a disponibilização de um professor de apoio em favor do educando A lhe ensejará maior déficit cognitivo em relação aos demais alunos.

Presentes as condições legais, DEFIRO a medida liminar para DETERMIMNAR à autoridade coatora a disponibilização de um professor de apoio capacitado em educação especial para acompanhamento, em sala de aula, do infante A. Concedo o prazo de 30 dias para efetivação da ordem.

Durante este interregno, a fim de se evitar maiores prejuízos ao educando, autorizo o acompanhamento do infante por profissional particular, em havendo disponibilidade financeira dos impetrantes a tanto.

II) Desnecessário o recolhimento de custas, ex vi do art. 141, §2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

III) I-se os impetrantes para que providenciem as cópias dos documentos que aparelham a inicial, a fim de se serem juntados na via que será encaminhada à autoridade coatora, nos termos do art. 6º da Lei n. 12.016/09. Prazo de 10 dias.

IV) No mesmo prazo, deverão os impetrantes apresentar outra via da inicial, possibilitando o cumprimento do inc. II do art. 7º da Lei n. 12.016/09.

V) Atendidas as diligências determinadas nos itens II e III, notifique-se a autoridade coatora acerca do conteúdo da petição inicial, enviando-lhe a segunda via apresentada, com as cópias dos documentos, a fim de que, no prazo de 10 dias, preste as informações.

VI) Dê-se ciência do feito à Fazenda Estadual, órgão de representação judicial a que se encontra vinculada a autoridade coatora, enviando-lhe cópia da inicial sem documentos, para que, querendo, ingresso no feito.

VII) Findo o prazo a que se refere o item IV, abra-se vista ao Ministério Público.

Apiaí (SP), 05 de maio de 2011.
Paulo Alexandre Rodrigues Coutinho
             Juiz de Direito

2 comentários:

  1. Surrupiei um texto seu no Blog Judex, Quo Vadis? e postei. Espero que não se importe.

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  2. Pode postar sempre que quiser! Para mim é uma honra. Aliás, fico super feliz quando vejo que as coisas estão tendo repercussão positiva!

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