25 de julho de 2011

Questão delicada: interrupção de gravidez de risco de feto anencéfalo


Processo nº 505.01.2009.007214-0
Controle nº 1416/09
3ª Vara de Ribeirão Pires/SP
PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ
Requerente: XXXX

PARECER DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA

Meritíssimo Juiz:

Trata-se de PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ, promovido por XXXX, alegando que o feto é anencéfalo e a gravidez é de risco.
Com a inicial, juntaram os documentos de fls. 05/12, dentre os quais relatório médico e exames diagnósticos.
É o breve Relatório.
O pedido merece ser acolhido.
O Supremo Tribunal Federal ainda não se manifestou definitivamente sobre o tema, pendendo a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n˚ 54, na qual foi determinada a suspensão dos processos penais em curso até final decisão (DJe-092  Publicado em 31-08-2007, PP-00029).
A requerente visa afastar eventual responsabilização penal por crime de aborto, caso realize a interrupção de sua gravidez sem autorização judicial.
Com efeito, a requerente demonstrou a ocorrência de gravidez de risco de feto anencefálico.
O laudo de biometria óssea de fls. 08 atesta haver: “acrania fetal com encéfalo pendular e alteração textural da forma dos ossos da face”.
O laudo de Ultrassonografia Morfológica de fls. 09/10 atestou tratar-se de feto anencefálico, bem como, no tocante à morfologia fetal: “crânio ausente, notando-se a presença da massa encefálica móvel em contato com o líquido aminiótico”.
A médica Dra. L, com especialidade em ginecologia e obstetrícia, atestou ainda tratar-se de “pré natal de alto risco”. (fls. 11)
Foi demonstrada satisfatoriamente a presença dos requisitos para a concessão do pedido.
Se a gravidez é de risco e o feto é inviável, não há como negar à requerente que realize a interrupção de sua gravidez, não apenas porque a negativa afrontaria sua dignidade enquanto pessoa humana, mas também porque levaria a riscos à sua vida e saúde.
Ora, tendo em vista o balanço dos bens jurídicos postos em análise, verifica-se que de um lado está uma jovem pessoa adulta cuja vida encontra-se em risco e, de outro, um feto portador de acrania e anencefalia, com mera expectativa de vida, cujas chances de sobrevivência aproximam-se do zero.
Torna-se dispensável a realização de audiência ou dilação da instrução probatória para a análise da questão posta, tendo em vista o acervo probatório documental carreado, sendo necessária apenas a análise da questão jurídica acerca da possibilidade de realização do procedimento médico requerido.
Se por um lado o Código Penal apenas autoriza a realização do aborto em duas hipóteses, já a Lei nº. 9.434/97 (Lei de Transplante de órgãos), determina que a vida cessa com a morte encefálica, ou seja, a morte é a cessação das atividades cerebrais (as atividades cerebrais devem estar totalmente interrompidas – parada total e irreversível das funções encefálicas, ausência de atividade bioelétrica-encefálica).
Sem crânio e anencéfalo, como diagnosticado nos autos, não há atividade cerebral, ou seja, o feto equiparar-se-á ao natimorto, quando de eventual parto [Neste sentido, Paula Siverino Bavio ensina que “a anencefalia é o equivalente ao estado vegetativo permanente (EVP) que implica a perda absoluta de consciência, a afetividade e a comunicação, com conservação dos ciclos sono-vigília, reflexos e movimentos oculares, respiração espontânea, reflexos protetores do vômito e tosse”. (Algunas cuestiones éticas y legales sobre la anecefalia, in http://revistapersona.4t.com/l9Bavio.htm )].
Guilherme de Souza Nucci abaliza o posicionamento adotado, ao lecionar que:
"Entretanto, se os médicos atestarem que o feto é verdadeiramente inviável, vale dizer, é anencéfalo (falta-lhe cérebro), por exemplo, não se cuida de vida própria mas de um ser que sobrevive a custa do organismo materno uma vez que a própria lei considera cessada a vida tão logo ocorra a morte encefálica. Assim, a ausência de cérebro pode ser motivo mais do que suficiente para a realização do aborto, que não é baseado, em características monstruosas do ser em gestação, e sim na sua completa inviabilidade como pessoa, com vida autônoma, fora do útero materno". (in "Código Penal Comentado", Editora Revista dos Tribunais, edição 2000, pág. 335).
Ainda no mesmo sentido, ensina Alberto Silva Franco:
"O aborto eugênico tem por fundamento, o interesse social na qualidade de vida e independente de todo o ser humano, e não o interesse em assegurar a existência de qualquer um desses seres e em quaisquer condições. O aborto eugênico traduz-se como as demais hipóteses do sistema de indicações, em causa excludente de ilicitude". (Aborto por indicação eugênica - Alberto Silva Franco, pág. 27).
A propósito, outro não é o pensamento de parte considerável da jurisprudência. Exemplos: TJ/SC, RT 756/652; 781/581; MS 329.564-3/3, j. 20.11.00, in Bol. AASP n˚ 2.211, p. 1818; TJ/RS na Apelação criminal n˚ 70026983445, publicada no Diário da Justiça do dia 27/11/2008; TJ/RJ no Habeas Corpus 2008.059.07542, data de Julgamento: 09/12/2008, Ementário: 11/2009 - N. 1 - 10/06/2009.
Para elucidar melhor a jurisprudência permissiva, transcreve-se a seguinte ementa oriunda do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
EMENTA:  PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ. FETO ANENCÉFALO. DOCUMENTOS MÉDICOS COMPROBATÓRIOS. DIFÍCIL POSSIBILIDADE DE VIDA EXTRA-UTERINA. EXCLUSÃO DA ILICITUDE. APLICAÇÃO DO ART. 128, I, DO CP, POR ANALOGIA IN BONAM PARTEM. Considerando-se que, por ocasião da promulgação do vigente Código Penal, em 1940, não existiam os recursos técnicos que hoje permitem a detecção de malformações e outra anomalias fetais, inclusive com a certeza de morte do nascituro, e que, portanto, a lei não poderia incluir o aborto eugênico entre as causas de exclusão da ilicitude do aborto, impõe-se uma atualização do pensamento em torno da matéria, uma vez que o Direito não se esgota na lei, nem está estagnado no tempo, indiferente aos avanços tecnológicos e à evolução social. Ademais, a jurisprudência atual tem feito uma interpretação extensiva do art. 128, I, daquele diploma, admitindo a exclusão da ilicitude do aborto, não só quando é feito para salvar a vida da gestante, mas quando é necessário para preservar-lhe a saúde, inclusive psíquica. Diante da moléstia apontada no feto, pode-se vislumbrar na continuação da gestação sério risco para a saúde mental da gestante, o que inclui a situação na hipótese de aborto terapêutico previsto naquele dispositivo. Apelo ministerial improvido, por maioria. (Apelação Crime Nº 70021944020, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Julgado em 28/11/2007)
Ainda, a gestação está com aproximadamente 16 (dezesseis) semanas, ou seja, próxima dos 4 meses, sendo que neste estágio ainda é possível falar-se em interrupção da gravidez, posto que mais tarde, por volta dos 8 meses, só é possível falar-se em interrupção do próprio parto, com  prognóstico de óbito da gestante muito maior.
Se a mera presença da anencefalia já conduziria à possibilidade da concessão do pedido, quando presente ainda o risco à vida e saúde da gestante, com maior razão há que se deferir.
Neste sentido é o ensinamento de Pedro Frederico Hoof:  

“a anencefalia aumenta significativamente, o risco da gravidez e do parto para a gestante, por várias causas. Entre elas, menciona-se o fato de estar acompanhada amiúde (entre 30 e 50% dos casos) de polihidrâmnios com todas as complicações deles decorrentes (dificuldade respiratória, hipotensão em decúbito dorsal, ruptura uterina, embolia de líquido amniótico, desligamento normoplacentário, atonia uterina pós-parto, etc). Comprovou-se, além disso, que os fetos podem ser grandes – macrossomia fetal – e a ausência de pescoço e o tamanho pequeno da cabeça fazem com que o tronco tenda a penetrar no canal do parto junto da cabeça, provocando assim uma grave distocia”24. Não obstante, o aumento real desses riscos, não há cogitar que a vida da gestante esteja em jogo. (in Anencefalia e interrupción del embarazo: una visión integradora a la luz de La Bioética y los Derechos Humanos, Bioética y Derecho. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2003, p. 354)
No caso em análise, a médica especialista em ginecologia obstetrícia atestou tratar-se de gravidez de risco, o que basta para conceder o pedido em razão do mencionado balanço de bens jurídicos. É que num Estado Democrático de Direito fundado na dignidade da pessoa humana e com objetivo de promover o bem de todos, não se pode deixar de tutelar a jurisdicionada que se socorre do Judiciário como último e único meio de garantir sua existência digna, deixando de ser obrigada a persistir numa gravidez que pode lhe acarretar a morte e certamente não trará à vida efetiva o filho tanto desejado.
Ante o exposto, preenchidos os requisitos constitucionais, opino pela autorização da interrupção da gravidez de risco do feto anencéfalo.
É  o  P A R E C E R.
Ribeirão Pires, 30 de outubro de 2009.

Nathan Glina
Promotor de Justiça Substituto

3 comentários:

  1. Olá mestre Ralpho!
    Obrigado por comentar e por estar acompanhando o blog!

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  2. Olá Dr. Ayrton, muito bom e interressante seu blog.
    Estou na faculdade e o professor passou um trabalho justamente sobre esse tema, vou pegar os fundamentos do promotor para me auxiliar na elaboração na tese.

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