16 de julho de 2011

Doguinhos

Excerto da sentença do juiz Bruno Machado Miano nos autos n. 617/2007 da 2a Vara da Comarca de Dracena.


...Na presente causa, quer pela afirmação da autora não contestada pela ré; quer pelos documentos juntados; quer, ainda, pelas testemunhas ouvidas, verifica-se que o animal doméstico T veio a óbito em decorrência da ação estatal.
Ainda que o pequeno cão tenha sofrido complicações posteriores, com intervenção cirúrgica, ou tenha porventura recebido alta de modo antecipado, vislumbra-se nitidamente que sem a inicial conduta do agente de saúde pública, o evento danoso não teria ocorrido.
Justamente para casos tais, em que a legítima ação estatal (in casu, a prevenção contra a leishmaniose) provoca danos a particulares, foi que se estabeleceu a responsabilidade objetiva do Estado (Constituição Federal, art. 37, § 6º).
E verifica-se, no caso dos autos, que realmente não é possível atribuir culpa ou dolo aos agentes municipais e tampouco ao pai da autora.
Os primeiros, porque agiram com a costumeira diligência, pelo que se extrai dos autos; apenas quando o cão mordeu a mão do agente municipal foi que este, de modo instintivo (o que é natural, humano), puxou-a, vindo a ferir o animal.
Corroborando isso, há a minuciosa versão do servidor C, a fls. 81/87 dos autos – não contrariada pelas demais provas constantes nos autos.
De outro lado, seria ato extremo imputar o evento à omissão do pai da autora, que não teria ajudado a segurar o cão. Primeiro, porque não há nos autos o informe de que os agentes públicos tivessem pedido essa ajuda. Depois, porque não estava obrigado a fazê-lo, ante a presença de uma equipe técnica, habituada com a prática da coleta de sangue animal.
Em suma, foi um evento danoso sem culpados, o que não afasta, porém, a responsabilidade objetiva da Fazenda Pública Municipal, que deve indenizar a cidadã dos prejuízos por ela suportados.
Os danos materiais sequer foram impugnados. Ainda que fossem, há documentos nos autos, comprovando o desembolso, pela autora, da importância de 512 reais (fls. 28 e 29).
Não é justo impor à autora que suporte tais danos, porque a ação estatal atende aos anseios de toda a coletividade.
Quanto aos danos morais, não há como, nessa etapa de nossa civilização, negar-lhe a ocorrência, “apenas” por se tratar da morte de um animal doméstico.
Antes de tudo, imperioso reconhecer que um cão não é apenas animal doméstico; é, também, bicho de estimação, donde se infere que recebe de seus donos estima, carinho, cuidados, enfim, uma série de medidas destinadas a bem cuidar de algo/alguém circunscrito às relações de seu bem-querer.
Tais animais, na cultura brasileira, a par de serem classificados juridicamente como coisas, bens, semoventes, não possuem utilidade economicamente apreciável, servindo mais para companhia, distração e, no mais das vezes, forma de desenvolvimento sadio de nobres sentimentos, como a caridade, o afeto e até a amizade.
Não é por outro motivo que são lúcidas e veramente atuais as seguintes palavras, do respeitado jurista Antonio Junqueira de Azevedo, in verbis:
“2. A Deficiência Antropocêntrica. Tomado desses espírito rebelde, penso que todos os grandes filósofos, para alegria dos humildes, cometem grandes erros (além de pequenos). O erro de Kant foi o de considerar que toda a vida não-humana, a vida em geral, e, em especial, a vida dos animais, era desprezível, sem dignidade, coisa! (...) Ora, é preciso acabar com essa concepção de que a vida n natureza é algo axiologicamente vazio, algo neutro, bruto, que pode ser manipulado e, depois, pago em dinheiro por nós, ‘os dignos’. A vida é um valor. A vida é um valor em si, um valor ontológico. A permanente afirmação da dignidade da pessoa humana, sem valorização da vida em geral, é uma grande arrogância. No fundo, estão dizendo que o homem é o rei da criação. Cada um de nós, um reizinho.” (‘Crítica ao Personalismo Ético da Constituição da República e do Código Civil. Em favor de uma Ética Biocêntrica’, apud “Princípios do Novo Código Civil Brasileiro e outros temas: Homenagem a Tullio Ascarelli”, JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio; TORRES, Heleno Taveira; CARBONE, Paolo (coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 21)
Assim, faz a autora jus a uma indenização para reparar os danos morais por ela experimentados, decorrentes do seu pesar, de sua dor e de sua aflição.
Atento à causa em apreço, relembrando que o resultado não surgiu de uma ação culposa ou dolosa; mas também visualizando a angústia experimentada nos dias em que o animal era tratado, fixo a indenização em R$ 10.000,00 (dez mil reais), valor esse que, se não corresponde ao mínimo postulado na inicial, é suficiente para a autora, eventualmente, socorrer-se de amparos médicos e psicológicos a fim de superar o trauma....

2 comentários:

  1. Parabéns pelo Blog...e pelas sentenças...é bom saber que há magistrados que não reconhecem um processo apenas como um "amontoado" de papel e, sim, como um "amontoado" de papel que traz o relato de um problema, de sofrimento, de angústia...enfim, um pedido de ajuda...
    Obrjgada por tornar a Justiça "mais justa"...e fazer com que acreditemos que as coisas podem ser diferente...

    Taís - acadêmica de Direito.

    P.S: já sou sua fã há algum tempo, sempre que posso leio seus textos...

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